No centro da margem um pequeno píer levava a barca do meio sol. Era o único modo de deixar o Vale, sem morrer de sede nas montanhas secas do entorno. A qualquer alma era cobrada uma taxa, o preço não era fixo. Pagarás o que nunca puder arcar. Era de interesse da família Arantes que seus funcionários nunca partissem.
Macabea parou diante do velho atravessador e encarou os dentes que não existiam na boca. Ele sorriu exalando o hálito que lhe apodrecia o interior, depois encarou as crianças desconfiado.
- Pegue o dinheiro. – disse a mulher com uma gota de contentamento.
O sorriso não teve tempo de germinar no seu interior, pois passadas de cavalo brotaram ao redor, sem freios, sem remorso.
- Macabea. – disse a voz não mais de criança, mas de jovem que se passa por adulto.
O marido foi encarar o cavalo que vinha carregar o jovem Miguel Arantes, filho mais velho da viúva. Os donos de tudo, do mundo que eles conheciam. Os olhos do irmão ecoavam ainda no rosto pálido e repleto de espinhas de idade, os cabelos estavam perfeitamente penteados para trás, o semblante ia da displicência para a fúria em um misto confuso.
- Senhor. – respondeu a mulher com os ombros a desabar em derrota.
O marido se apressou antes que Miguel pudesse fazer perguntas, apenas retirou o dinheiro dos bolsos e o segurou diante do velho atravessador. Duas notas, esforçadas e impossíveis.
- Se partir agora te dou tudo. – cochichou o pai ao atravessador.
O velho sorriu sem dentes e esticou o braço a fim de aparar a quantia.
Macabea paralisou, encarou o jovem patrão parado ainda esperando explicação.
Ele sabe. Pensou sem demonstrar.
Mas não pode me proibir.
A mulher despediu-se com um aceno, pegou os dois filhos nas mãos e foi notar o marido que hesitava em entregar todas as economias. Quantas noites jantando lagartos do mato, quantas manhãs deixavam as crianças dormirem mais para não precisar do pão para reavivar as energias? O mercado, o ambulatório, tudo pertencia a família de patrões, as pessoas trabalhavam por pagar suas dívidas feitas antes de existirem. Passava de pai para filho feito doença genética.
- Entregue. – ordenou Macabea ouvindo o cavalo relinchar ao fundo.
O marido encarou o jovem no cavalo, as poucas notas seguras nas mãos. Miguel, um rascunho do pai que tivera. Homem forte, firme nas decisões. Por vezes era justo, dava-lhe grãos e leite a cada nascimento dos filhos. Noutra surgiu na noite do casório. Macabea ainda aguardava o marido no quarto quando o patrão adentrou o cômodo.
- Não repare a maloca do pobre homem. – lembrou-se de ter dito.
- Vim lhe dar os parabéns. – dissera o velho na época. – E pedir meu direito de patrão sobre a primeira noite.
De certo que o homem simples nada entendera, até que outros empregados trouxeram comida e bebida a festa. Os convidados se animaram, os pequenos festejaram. Mas foi o desgosto quem venceu os sentimentos. O velho senhor passou por ele como se fosse transparente, seguiu aos aposentos e teve Macabea feito porco no cio.
Quem pudera impedir o homem superior senão o Deus que o criou? Daquele dia em diante a divindade foi blasfêmia naquela casa.
Macabea encarou Miguel e viu nos seus olhos o desdém do pai. Dos tempos que era jovem garota, formosa e sem corpo. Lembrava-se das vezes que fora apalpada enquanto limpava as escadas sem fim do casarão. A tudo tinha de se sujeitar, aprendeu assim a ser dura, composta e firme.
- Entregue. – repetiu ao marido.
O homem engoliu a sede que lhe queimava a garganta, encarou os filhos em aprovação e foi dar o dinheiro na mão do velho.
Não há forma de controlar o destino, a mesma forma como o vento sempre se desviava do Vale a fim de lhes causar sofrimento, a brisa veio sedenta por desgraça iminente. Soprou com gargalhada os dedos do homem forte, levitou as notas e a esperança e as fez pousar sobre a correnteza do imundo rio.
Macabea berrou qualquer coisa sem significado, segurou as crianças que se movimentaram de repente, mas os braços terminaram antes que pudesse aparar o homem a sua frente. O marido foi jogar-se na água turva, afundou em busca da pouca riqueza, retornou a superfície uma ou duas vezes, debatendo, implorando por misericórdia, encarou os filhos, foi ao fundo... Em determinado momento nunca mais retornou a superfície.
O velho no barco cuspiu no túmulo e foi-se embora reclamando para si. As crianças estrebuchavam nos braços fortes de Macabea, que viu a romaria de lixo desaparecer com o corpo do homem que lhe pedira uma eternidade. Estava sepultada ali a esperança de seu mundo.
Passou pela cabeça atirar os filhos e mergulhar em seguida, terminar história sem epílogo.
Miguel montou o cavalo mais uma vez e foi-se sem palavras. Macabea ajoelhou-se diante da margem, fez-se chorar por alguns minutos junta aos filhos, depois bateu a saia de cor sem graça e voltou nos mesmos passos.
O passado se torna futuro, o futuro retorna ao primeiro passo.
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O Vale dos Suicidas
RomantizmMacabea vive no Vale, onde pobres almas esperam ansiosas o dia de partir. Cerceada por um rio mórbido e faminto por novos cadáveres, ela vê sua família falhar na única chance de fuga, ante o desespero de permanecer ali para sempre. Personagens se c...
Capítulo 1
En başından başla