nós está perdida entre as obrigações de sobrevivência e a culpa por
reconhecer, às vezes com dor, às vezes com menos dor, que a avó
ficou para trás.
Outro exemplo fácil disso é a desvalorização da
maternidade. Ser mãe não paga salário; logo, pouco vale. Não é à toa
que as mulheres emancipadas não querem ser mães de muitos filhos
porque preferem ter uma inserção maior na cadeia produtiva de bens.
O fato mais profundo dessa questão das mães é que, apesar
da importância da geração de filhos, a sensação de que a maternidade
pode ser vista como improdutiva (ainda que as mulheres não
confessem esse fato escondido) é ainda muito dolorida para mulheres
emancipadas. A sociedade contemporânea avança à medida que ela
abre espaço e amplia a vida na sua dimensão de instrumento de
produção de bens e serviços. Tem um lado bom nisso, que são os
ganhos em enriquecimento da vida material para a maioria das
pessoas. O mundo nunca foi tão rico como desde o século XVIII. Mas
tudo tem um lado sombrio. É nesse lado sombrio que estão o
Romantismo e o sentimento de que não podemos pensar na nossa
própria língua: porque nossa língua pode complicar nossa vida na
cadeia "oficial" de produção de bens. Posso não servir para nada
sendo quem eu sou ou falando o que quero falar. Essa cadeia
produtiva pode ser uma empresa ou uma universidade, mesmo que
esta última seja o lugar contemporâneo por excelência da produção
quase irrelevante. Ou pode ser sua família. Famílias modernas
toleram pouco elementos improdutivos que funcionam como mala
sem rodinhas no cotidiano.
Sendo assim, a vida encaixada na sociedade instrumental
tem suas vantagens e desvantagens. Uma das vantagens é o próprio
sentimento de que você é um ser produtivo cheio de possibilidades
na vida. Uma das desvantagens é a sensação de que algo nos é roubado
à medida que pensamos só no sucesso material e esquecemos que
algo de nós "não pensa com eficácia" o tempo todo e, se o fizer,
enlouquecemos. Preste atenção na seguinte situação que serve como
sinopse para o drama romântico diante da sociedade do sucesso e da
eficácia em que todos vivemos – menos os desgraçados em geral.
Imagine que você tenha chegado aos cinquenta anos muito
bem de vida. Que você tenha saúde, sexo à vontade, grana e uma puta
casa. Agora imagine que você acorda no meio da madrugada depois
de um pesadelo e se debate na cama. Olha ao redor e está só, porque
vive só. Suas opções ao longo dos anos foram sempre em favor das
garantias profissionais. Isso "pagou bem", mas, às vezes, como
agora, às três da manhã, você se sente miseravelmente só. Tem
filhos, mas nunca os vê porque eles também estão ocupados com a
vida deles. O espectro da solidão do velho o atormenta. O corpo, já
não tão jovem, começa a dar sinais, mostrando que ele é seu dono e
não você o dono dele. Você se levanta, anda pela enorme casa vazia e
se pergunta: o que eu fiz da minha vida? Onde estão meus vínculos
afetivos duradouros? Será que você os dissolveu no sucesso
profissional e no desejo narcísico de só pensar em si mesmo?
Lamento dizer, mas você está em meio à crise romântica
quando algo assim lhe acontece. Isso pode despontar em meio ao
trânsito ou em meio a um feriadão. Pelo menos, saiba que você não
está sozinho nessa miséria moderna.
Esse é o mal-estar com a modernidade que caracteriza o
Romantismo. Bem-vindo à sua casa.
A vida roubada é aquilo que você projeta como sendo tudo
o que perdeu quando estava ocupado sendo objetivo e eficaz. Mas não
adianta pôr a culpa nos outros; você bem que teve alguns gozos nesse
processo. Confesse como gozou enquanto melhorava de vida. Não
faça como esses mimados que reclamam de tudo. Assuma seu papel.
Ainda assim, o sentimento de mal-estar é verdadeiro: você não é um
mentiroso porque se sente dividido entre a felicidade com o sucesso
moderno e o sentimento de que algo se perdeu nisso. A pergunta que
fica é: como enfrentar esse mal-estar? Podemos fazer algo para que,
estando em meio a tudo isso, consigamos resgatar alguma porção
daquilo que parece perdido e que é nosso?
Penso que em alguma medida sim, podemos, e os
capítulos restantes deste livro são dedicados a essa ideia. Falar em
sua própria língua é, antes de tudo, ter coragem de enfrentar os
problemas que a filosofia nos traz, sem medo de sermos obrigados a
pensar em coisas de que não gostamos. É desistir de agradar quando
se pensa. É ser (quase) indiferente a quem tem qualquer expectativa
sobre quem você é e o que você pensa. É pensar sem querer construir
"um mundo melhor". É pensar de modo "extramoral", como dizia
Nietzsche. É não querer "fazer o bem" enquanto pensamos. Em
síntese, é pensar acompanhado pelo que chamo de nosso coro
particular de demônios, e por isso vamos começar por eles. O malestar
que isso pode trazer é parte do processo, sinto muito.
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Filosofia para Corajosos- Luiz Felipe Pondé
RandomO objetivo deste livro é ajudar o leitor a pensar com a sua própria cabeça. Para tal, o filósofo e escritor Luiz Felipe Pondé, autor de vários best-sellers, se apoia na história da filosofia para apresentar argumentos para quem quer discutir todo e...
CAPÍTULO 4
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