repertório filosófico. E coragem para falar em primeira pessoa.

Quem nunca leu nada não tem opinião sólida sobre nada, apenas

achismo, uma opinião vazia, como dizia Platão, quando fazia a

diferença entre ter opinião (doxa) e conhecer algo (episteme).

Conhecer demanda trabalho, conversar com outras pessoas e ler

alguns livros. Na maioria dos casos, conversar com mortos. Uma

opinião vazia, qualquer bêbado tem.

Falar a língua dos outros faz parte de um sentimento mais

amplo, que é, de certa forma, viver uma vida que não é a sua. Muitas

vezes temos a sensação de que estamos vivendo a vida dos outros e

não a nossa. Essa sensação aparece quando sentimos que fazemos o

que os outros querem e não o que nós queremos. Esses "outros"

podem ser o que chamamos de sociedade, pais, família, marido ou

mulher, filhos, o mercado, o Estado, "Deus", o mundo. Pouco

importa aqui se é o mundo ou a sociedade esse outro; o que importa é

a sensação de que não estamos fazendo o que verdadeiramente

queremos. E por que não conseguimos fazer o que queremos?

Por mil razões, entre elas porque nunca sabemos ao certo

o que queremos. E quem disser que sabe, o diz porque é mentiroso,

imaturo ou ignorante. Talvez porque não exista de fato esse "eu

verdadeiro" que quer fazer o que ele quer verdadeiramente fazer. Não

vou entrar aqui em questões do tipo "esse eu é meu cérebro ou minha

alma imortal ou o resultado de herança biológica e social em

interação?". Ou "sou uma construção social?". Não porque essas

questões não importem; elas importam, mas porque não é isso que

quero discutir agora. Enfim, exista ou não esse eu verdadeiro, o

sentimento de falsidade consigo mesmo, ou de fazer o que os outros

querem que façamos, é a mais pura realidade contemporânea, e fazer

filosofia em língua própria passa por ser capaz de romper, de certa

forma, com essa sensação, que muitas vezes se apresenta à

consciência e ao afeto de quem a tem, como uma espécie de

escravidão. A frase que vem à nossa cabeça é "sou um escravo do

mundo e não sou livre". A pergunta é: posso escapar disso? Acho que

em alguma medida sim. Vamos ver.

Mas antes de verificar essa sensação, que me parece

verdadeira, independentemente de ser possível de fato ou não dizer

de onde ela vem, existem outros motivos para vivermos uma vida

que não sentimos que seja a nossa. Um desses motivos para não

conseguirmos viver a nossa própria vida pode ser mais prosaico e

banal: não termos grana e sermos obrigados a ser motoboy, e

pronto. Ou trabalhar em telemarketing. Está na moda gente bonitinha

falar que os mais jovens estão mudando seus valores para com o

trabalho. Bobagem: jovens com grana podem, ainda bem, escolher o

que fazem. É só isso. E como tudo hoje vira um statement (uma

afirmação "de valor"), fica bonitinho na fita posar de "nova

consciência" na relação com o trabalho. Não existe nova consciência

com o trabalho; existe gente que pode escolher o que faz porque tem

grana, e existem profissionais que pregam em empresas (e ganham

uma puta grana com isso) que há, sim, uma nova consciência para

fazer os coitados esmagados pelo cotidiano corporativo acreditarem

que conseguirão um dia escolher o próprio trabalho – dificilmente

conseguirão. Esses gurus corporativos são uns mercadores de

esperança barata.

Vale dizer, você pode ser uma pessoa supercorajosa e

mandar tudo para aquele lugar e fazer o que quer, mas é quase certo

que o estômago vai falar mais alto, na maioria das pessoas normais.

Às vezes, ser normal é ser banal. Mas, se você tiver grana, pode

vencer mais facilmente essa escravidão ao estômago.

Voltemos à verdade da sensação de que vivemos uma vida

que não é a nossa. Vejamos essa sensação num sentido mais profundo

do que apenas a questão da grana. Para fazermos isso, teremos de

enfrentar a questão do Romantismo, para além da ideia simplista de

que Romantismo significa somente amor romântico.

O Romantismo foi um movimento literário, filosófico e

religioso que nasceu na região mais tarde chamada Alemanha, em

meados do século XVIII. Esse movimento, apesar de estar associado

no imaginário das pessoas à ideia de amor entre um homem e uma

mulher, e aos sofrimentos decorrentes desse amor (como no

romance de Goethe Os sofrimentos do jovem Werther), foi muito mais

que isso. Para entendermos o que o Nietzsche tinha na cabeça quando

falou sobre a importância de fazer filosofia em primeira pessoa, é

necessário sabermos o que foi o Romantismo de fato, porque a

afirmação de fazer filosofia em primeira pessoa é uma afirmação

romântica. É o que veremos a seguir.

Filosofia para Corajosos- Luiz Felipe PondéWhere stories live. Discover now