Capítulo 1

38 2 1
                                    


Nenhum dos legalistas mexeu um músculo quando Huirau Hoepo entrou no corredor que circundava as muralhas externas do Palácio Branco. Seus passos ecoavam na escuridão parcamente controlada por poucas lanternas a óleo de baleia, ignorados pelos soldados entrincheirados atrás de barricadas feitas da mobília quebrada. Nenhum par de olhos desviou-se da entrada ou das janelas estreitas onde arqueiros esperavam em silêncio. O intruso passou despercebido, um sorriso no rosto ao reconhecer cada movimento, cada murmurar. Aqui um soldado de cabelos grisalhos murmurava uma prece a algum deus esquecido. O jovem de bigodes ralos ao seu lado esfregava o polegar no indicador, como se a tensão de esperar pelo inevitável provocasse coceira. Alguém chorava baixo. Huirau identificou o garoto, provavelmente menos de quinze anos de idade, encolhido atrás do seu escudo e lança. Nenhum de seus companheiros olhava para ele, como se fazê-lo poria um fim no que lhes restava de força de vontade.

Outro novato soltou um gemido alto. Huirau contou até três. Exatamente no último instante contado veio o estrondo. Os soldados - aqueles com alguma coragem restante - viraram-se para trás, na direção das portas duplas para onde Huirau caminhava. Um grito de surpresa veio lá de dentro. O veterano de cabelos grisalhos se levantou, fez como quem ia atender ao chamado, mas hesitou. Nem mesmo ele seria valente o suficiente para enfrentar o Arconte.

Huirau chegou até a porta. Estava fechada não por segurança, mas por um capricho dele mesmo. Toda a vez que fazia esse caminho, Huirau fechava a porta. Era como se desse mais credibilidade a tudo. E ele gostava da sensação de tocar o metal frio feito de uma liga desconhecida, gostava de deslizar os dedos pelos padrões orgânicos esculpidos com uma técnica perdida, desenhando o que pareciam ser raízes ou galhos estendendo-se por toda a parte. Pequenos símbolos - palavras em uma língua esquecida - faziam o papel de folhas e frutos na árvore de metal.

Empurrou com ambas as mãos, ouvindo o ranger alto que interrompia o silêncio que se espalhara pelo palácio logo após os soldados legalistas perceberem a futilidade de sua resistência.

Abriu um sorriso largo. Chegou bem a tempo.

O último rei do então decadente Sacro-Império Valmedor tropeçou para trás no próprio manto púrpura. Caiu no tapete que cobria todo o gigantesco salão, certamente obra de súditos que acreditavam em sua divindade. Pena que o tapete não resistira ao tempo e ao clima. Uma pilha de escombros ocultava boa parte da sua superfície onde o teto havia sido arrebentado pelo Arconte. Flocos de neve desciam lentamente, acumulando sobre o artesanato complexo que jamais poderia ser replicado. Huirau suspirou com a perda, mas tentou não dar muita atenção. Não podia desperdiçar um momento sequer do que estava para acontecer.

Neve não era a única coisa que descia do buraco no teto.

O Arconte também o fazia, como uma cachoeira de piche, óleo em um copo d'água, penetrando lentamente o salão em filamentos de tamanhos diversos. Atingiam o chão, formando ondas que pareciam espalhar-se menos como líquido, mais como um ser invasivo buscando uma presa.

- Deixe-me em paz! - gritou o último rei, um braço magro erguido para proteger o horror em seu rosto. Ele parecia saber muito bem o que viria a seguir.

Ninguém era capaz de fazer o Arconte mudar de ideia uma vez ele tomasse uma decisão.

A luz das muitas lanternas espalhadas pelo salão, postas lá anteriormente pelos funcionários do Ministério à mando de Huirau, não era o suficiente para penetrar a escuridão viva que circundava o Arconte. Ele parecia flutuar logo acima no chão, coalescendo sem tocar o tapete que narrava os mil e quinhentos anos da linhagem dos reis Valmedor desde a fuga de Myambe até a conquista dos Onze Reinos. No interior da escuridão o que restava do ser milenar mal podia ser reconhecido como algo humano. Sombras serpenteavam como tecido puído, lembrando vagamente as túnicas de gola alta que voltaram à moda entre os membros do governo. O rosto era quase invisível senão pelos olhos de alguma forma capazes de serem mais escuros que a própria escuridão a sua volta.

You've reached the end of published parts.

⏰ Last updated: Jan 26, 2017 ⏰

Add this story to your Library to get notified about new parts!

Sombras e EcosWhere stories live. Discover now