A Feira e Futuro da Ficção (Carlos Rocha)

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Acho que a palavra preferida dela era detesto. Dizia com tanto desgosto e propriedade que saia de sua boca como uma verdade legítima e inquestionável. E como ela detestava coisas. Fumaça de carros, barulho de construção de prédios, todas as telenovelas (mas assistia a todas assiduamente), o advento dos supermercados, etc.

— O que é aquilo, meu filho — ela me chamava assim, pois nunca se casou nem teve filhos — empurrar um carrinho de metal para levar as compras? E depois aquela fila para pagar? É o fim do mundo! Detesto essa invenção de supermercados. Bom mesmo é ir à feira. — e listava todas as vantagens que as feiras tinham sobre os supermercados.

Mas naquela noite, a que antecedeu a publicação de minha foto, o nhoque dela estava insosso, mas o que mais me admirou é que ela não disse a palavra detesto nenhuma vez durante toda minha estadia. Na ocasião, pensei que ela estivesse doente e que fosse morrer logo. Não era este o caso.

Eu me despedi da %Tia Du e voltei para Salvador, mas não sem antes fazer minha habitual visita ao Sebo do Messias. Eu adorava sebos, e nos de Salvador, também encontrava de tudo, mas o Messias era o único que vendia os livretos mimeografados do meu escritor de ficção científica favorito, %Quincas Esturjão.

O fato é que %Quincas e o Messias foram amigos de infância que cresceram na remota cidadezinha de Guanhães, em Minas Gerais. Ambos se mudaram em busca de uma vida melhor em Belo Horizonte, onde trabalharam como garçons. Mas Messias queria mais e veio para São Paulo onde acabou criando um negócio bem sucedido com compra e venda de livros usados. Quincas e Messias sempre se correspondiam e o sebo em São Paulo, era um dos poucos pontos de venda no Brasil da rara literatura de %Esturjão. As tiragens dos livros eram pífias, de vinte a trinta exemplares, mas eu era um dos poucos que possuía quase tudo o que ele havia escrito. Sonhava em um dia, ir até Belo Horizonte conhecê-lo pessoalmente.

Ele nunca respondeu a nenhuma de minhas cartas como fã, mas conversando com o Messias, entendi o porquê. Uma de suas várias manias, ele simplesmente não abria nenhuma correspondência vinda de alguém que não conhecesse. Simplesmente queimava tudo o que não lhe "dizia respeito". Ao saber disso tive certeza de que era por isso que seus livros nunca foram editados por alguma editora.

Ah, eu pegue a nova noveleta de %Quincas Esturjão: Sim, senhor presidente! Fui feliz para a rodoviária tomar meu ônibus para Salvador. Seriam quase dois dias de viagem em estradas de péssima qualidade e paradas de ônibus piores ainda, mas eu conseguiria ler um pouco dele nelas, uma vez que era simplesmente impossível para mim ler com o ônibus em movimento.

A noveleta contava a estória de um experimento com macacos, na Universidade de São Paulo que pretendia através de soros, químicos e projeção de filmes, modificar a índole violenta de babuínos em cativeiro. A coisa apresentou resultados promissores. Tudo ia bem, até que o pesquisador resolveu aplicar em si mesmo o soro derivado de seus espécimes mais notáveis. Como consequência, o pesquisador foi modificando sua índole e se tornando um otimista inveterado. Com seu otimismo que beirava a fé, ele começou a resolver muitos problemas estruturais de seu departamento, veio a se tornar reitor, fazendo a universidade prosperar como nunca antes. Isso chamou a atenção de políticos e logo ele foi prefeito, governador e finalmente presidente. Havia uma tremenda coincidência, ou não, o apelido do presidente era Barba-Azul, como a novela que minha tia detestava. Mas na estória, era por causa de um efeito colateral do tratamento. Além de adquirir otimismo, o pesquisador tornou-se progressivamente mais peludo e parte da pelagem, passou a assumir uma tonalidade azulada assim como a dos babuínos dos quais ele extraiu o soro.

Era um presidente querido por muitos, pois trazia uma mensagem de esperança ao povo, mas detestado outros tantos, pois viam nele uma pessoa com muitas manias e estranhos trejeitos simiescos. Como costumavam dizer seus opositores: Lá vem o presidente com uma de suas macacadas. Mal eles sabiam que seus genes haviam sido realmente sido entrelaçados com os de macacos. Ele sempre usava um paletó de riscas esverdeadas com um bottom da bandeira do Brasil nele. Quando os assessores diziam: Sim, Senhor Presidente! Ele adorava e dava uns pulinhos simiescos de alegria.

Retratos não faladosWhere stories live. Discover now