A Dentadura

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Livro dedicado a minha irmã, minha comadre e minha melhor amiga JANAÍNA SANTOS!

Os primeiros raios de sol da manhã de primavera entraram de forma preguiçosa pela fresta da cortina de chita florida do quarto de Lady Janaína.

A menina dormia profundamente na antiga cama enferrujada que pertencera a Dona Remédios, sua tetravó, e vez ou outra se mexia no velho colchão de molas sobressaltadas.
Quando isso acontecia, o móvel balançava de um lado para o outro - como se fosse um dente de leite prestes a cair - e emitia ruídos ameaçadores, mas mesmo assim ela não acordava. Seu sono, porém, estava com os minutos contados:
- JANAÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍNA - a mãe de criação da garota bateu na porta azul com ferocidade. - ACORDA, ESTÁ NA HORA DE IR PRO COLÉGIO.
- Valei-me minha madrinha Nossa Senhora - assustada, ela quase caiu no chão empoeirado e corroído por cupins. - Precisa de uma gritaria dessas? Eu, hein?
Ainda um pouco atordoada devido ao excesso de sono, Janaína levantou em ritmo de tartaruga e abriu a cortina para averiguar as condições do clima.
O sol brilhava no céu límpido e da cor de anil, no entanto era possível enxergar uma pequena névoa no horizonte. Apenas por este motivo, a criança acreditou que estivesse fazendo frio lá fora ou que isso pudesse ocorrer no decorrer daquele dia. Doce ilusão.
- Eita bexiga, é melhor levar um casaco pro colégio - ela coçou os olhos da cor de jabuticabas. - Parece que hoje vai fazer o frio do Paraná aqui em Pau Miúdo, tô lascada!
Bêbada de sono, Janaína virou para sair dos aposentos, mas antes mesmo de dar o primeiro passo, a cortina de chita florida caiu em sua cabeça. Não era a primeira vez que aquilo acontecia e a julgar pelo tamanho dos buracos no tecido, tampouco seria a última.
- Um dia eu me livro de você, cortina da casa de Silvio Santos - frustrada, ela subiu em uma poltrona de palha e colocou o objeto nos pregos enferrujados. - Pronto, fique paradinha aí e não se atreva a cair de novo, está me ouvindo?
- JANAÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍNA - a avó da guria voltou a gritar. - TU VAI SE ATRASAR PARA O COLÉGIO, CRIATURA, SAIA LOGO DESSE QUARTO!
- Sangue de Nossa Senhora tem poder - ela voltou a se assustar quando desceu para o chão encardido de madeira. - Desse jeito não vou ter tempo para dar bom dia às minhas bonecas, eita velha afobada da gota serena,
Janaína era uma menina pobre, muito pobre. Ela vivia em uma casa muito humilde do interior da Bahia e tudo que lhe pertencia era de segunda mão, inclusive seus poucos brinquedos.
Por não ter condições de comprar bonecas de verdade, a solução que a neta de Dona Milagres encontrou para se divertir foi improvisar, utilizando a grande criatividade que lhe era bastante peculiar.
Ela própria confeccionou suas seis "filhas", todas feitas com sabugos de milho, gravetos e botóes quebrados dos vestidos de Dona Livramento, sua bisavó. As roupas das bonecas eram remendadas, compostas por toalhas de mesa rasgadas e fronhas que não eram mais utilizadas.
Seu dormitório era pequeno, modesto e ocupado apenas por sua cama de ferro, um armário de madeira - cujas portas estavam completamente soltas - e duas cadeiras feitas de palha, sendo que uma deles servia para acomodar os brinquedos.
- Bom dia, meninas - ela deu um beijo em cada sabugo, que tinham as bocas desenhadas com batom e os cabelos do próprio milho. - Vocês dormiram bem?
- JANAÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍNA - mais uma vez a dona da casa voltou a berrar.
- A bisavó de vocês acordou com a macaca hoje - ela ajeitou um dos olhos da terceira boneca, este feito com um botão azul. - Até mais tarde, comportem-se direitinho na minha ausência!
- JANAÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍ...
- EU JÁ VOU, VELHA CHATA DA FEBRE DO RATO, EU JÁ VOU - ela também se esguelou.
- Velha chata?! - Dona Milagres secou as mãos no pano de prato muito alvo e abandonou a cozinha no segundo seguinte. - Essa menina me chamou de velha chata???
- Precisa de uma gritaria dessas a essa hora da madrugada, vovó? - ela resmungou ao chegar no corredor. - A senhora quer me deixar surda, é isso?
- Eu vou é arrancar suas orelhas se tu voltar a me chamar de velha chata, sua moleca mal-educada - a filha de Dona Livramento puxou a orelha da única neta.
- Isso é um absurdo - Janaína franziu o cenho. - Eu só falei a verdade, não mereço ser tratada dessa forma!
- Vá logo botar seu uniforme, antes que eu perca a minha paciência! Daqui a pouco Zé das Minhocas vai passar pela estrada e tu não pode perder a carona pro colégio.
- Eu não vou botar nada porque não sou galinha - Janaína bocejou e voltou a coçar os olhos. - Eu vou colocar o uniforme, quando a senhora vai aprender a falar direito?
- Eu falo do jeito que sei falar - Dona Milagres ficou irritada. - Agora vá se arrumar antes que eu lhe dê uma "piza", visse?
- Onde é que já se viu uma coisa dessas - Lady Janaína saiu para o terreiro balançando a cabeça negativamente. - Sou ameaçada em minha própria casa e ninguém me defende, desse jeito vou ser obrigada a contratar um advogado!
- E não adianta resmungar não - a avó da pequena soltou todo o ar dos pulmões pela boca. - Ande logo, eu já vou arrumar sua lancheira.
- Não esqueça o meu suquinho, vovó - ela caminhou na direção do banheiro e ficou arrepiada com o vento frio matinal.
- Eita gota serena, não é que está frio mesmo? Tô lascada!
Meia hora depois, Janaína já estava completamente arrumada para mais um dia de estudos. Ela era bolsista do melhor colégio da região e isso era motivo de orgulho para toda a família, mas em especial para Dona Milagres.
- Tu fica tão linda nesse uniforme, Janaína - ela agarrou a garota e a apertou em seu corpo gorducho.
- Eu já disse que é para a senhora me chamar de Lady Janaína, vovó.
- Eu vou lhe chamar é de Janaína porque esse é o teu nome, moleca insuportável!
- Pois é, mas eu sou a menina mais educada, comportada, requintada e chique de Pau Miúdo, por isso mereço ser chamada de Lady Janaína!
- Tu tá é precisando de uma surra com vara de mamoeiro pra deixar de ser amostrada, isso sim!
- Me largue, vovó, me largue - Janaína reclamou. - Esqueci de visitar minha bisavó Libertação, preciso vê-la.
- O nome de mamãe é Livramento, Janaína - Dona Milagres corrigiu a miúda, com o sotaque mais carregado do que nunca.
- E libertação e livramento não é a mesma coisa? - ela desapareceu no longo corredor da humilde residência.
- Eita moleca desbocada da "tife" amarela! Essa daí puxou pra mãe mesmo e que Deus "potreja" minha finada filha, amém!
Janaína era de fato muito parecida com a genitora. A garota era alta para a sua idade, tinha a pele da cor de chocolate e os cabelos muito crespos, todavia o que mais se destacava em sua beleza infantil, com certeza eram seus olhos cor de jabuticaba. Estes eram grandes e deveras brilhantes.
- Bisavó Libertação? - ela entrou no quarto da idosa sem bater na porta. - A senhora já acordou?
A resposta era não. A idosa, que era muito parecida com a pirralha, estava dormindo e não percebeu a entrada da bisneta.
- Jesus imaculado, essa velha dorme mais que urso em época de hibernação - Jana lamentou. - Sim, não posso esquecer de pegar o casaquinho dela emprestado porque não sou obrigada a passar frio na gota serena daquele colégio!
- JANAÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍNA, O ZÉ DAS MINHOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOCAS - berrou Dona Milaggres, quando a neta chegou na sala. - CORRE, MINHA FILHA, CORRE!!!
- EITA BEXIGA TORREIRO - ela saiu correndo pelo quintal de terra. - ESPERA POR EU, ZÉ DAS MINHOCAS, ESPERA POR EU!!!
Quase não deu tempo da criança subir no caminhão que a levaria para a cidade vizinha. Se tivesse perdido a carona, Janaína perderia também a aula, uma vez que o Colégio Nossa Senhora do Perpétuo Socorro localizava-se no município de Buraco Apertado, há cerca de trinta quilômetros de Pau Miúdo.
- Essa foi por pouco, visse? - ela secou o suor da testa.
- ESTUDE DIREITINHO, JANAÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍÍNA - recomendou Dona Milagres, que acenava do portão de sua casa. - COMPORTE-SE E MANDE LEMBRANÇAS PRA MADRE SUPERIORA, VISSE?
- SIM SENHORA, VOVÓ, SIM SENHORA - ela também acenou e em seguida tentou arrumar o cabelo, mas este não saiu do lugar. - Desgraça de cabelo ruim do satanás!!!
- O que é que tu tá resmungando aí atrás, Janaína? - o motorista perguntou.
- Não é nada não, Zé das Minhocas, não é nada não - ela procurou o espelho em sua mochila cor-de-rosa. - Onde eu enfiei o espelho da caixa de pó de vovó Bênção, minha madrinha Nossa Senhora?
- Oxente, Janaína, o nome de tua vó não é Milagres? - especulou outra passageira do caminhão.
- E bênção e milagre não é a mesma coisa???
Nesse momento, o caminhão - que há pouco fora usado para transportar gado - passou por uma verdadeira cratera e automaticamente Janaína saiu voando, batendo a cabeça nos bambus que revestiam a carroceria do veículo instantaneamente.
- CREDO EM CRUZ, ZÉ DAS MINHOCAS - ela acariciou o cocuruto, no mesmo instante em que a outra passageira levantava. - COM OUTRA DESSAS EU VOU TER UM TRAUMATISMO CRANIANO E A COITADA DA MARIA DE JESUS VAI QUEBRAR O FIOFÓ!
- Eu me chamo Maria de Deus, Janaína - informou a moça.
- Jesus é filho de Deus, Maria, está tudo em família - ela sorriu bondosamente.
- Segura aí, Janaína - o comerciante de minhocas e artefatos de pesca pisou no acelerador, fazendo subir uma nuvem de poeira da estrada de terra.
- Quando será que esse povo vai aprender a me chamar de Lady Janaína? - ela tossiu devido ao pó e enfim encontrou o que estava procurando. - Vamos ver como está a porcaria desse cabelo.
Pausa.
- CREEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEDO, EU ESTOU TODA DESCABELADA!!! Oh, céus, o que eu fiz de errado para nascer com esse cabelo duro? Oh, derrota!
Não era possível enxergar muita coisa através das frestas dos bambus. A cada minuto a nuvem de poeira ficava mais alta e já não dava para distinguir sequer a cor das vacas e dos bois que pastavam nos terrenos ao lado da estrada.
Jana não foi a única a ocupar o caminhão de Zé das Minhocas. Ao longo do percurso que os levaria até Buraco Apertado, o bondoso homem ofereceu carona para outras pessoas e não demorou muito para que o recinto ficasse completamente abarrotado.
- Que cara é essa, menina Janaína? - uma senhora puxou assunto. - Por que tu tá com o nariz torcido desse jeito, criança?
- Primeiramente eu não sou criança, Dona Rosimunda - ela fez careta. - E a senhora também ficaria com o nariz torcido se estivesse ao lado desse homem fedorento!
- Fedorento? - o cara que dividia o caixote de madeira com a menina surpreendeu-se e cheirou as axilas. - Eu?
- Não, meu filho, aquele bonitão da novela das oito - ela cobriu o nariz com o colarinho da blusa e voltou a mexer na mochila. - Você já ouviu falar em sabonete e desodorante para o suvaco, já?
- Essa Janaína não tem papa na língua - uma mulher deu risada.
- Minha madrinha Nossa Senhora, me ajuda aí; eu vou morrer sem fôlego até chegar no Buraco Apertado - os olhos de Janaína lacrimejaram. - Dona Rosimunda, a senhora gostaria de trocar de lugar comigo?
- Gostaria não, minha filha, gostaria não - ela acenou três vezes com a mão. - E meu nome é Raimunda, visse?
- Raimunda, Rosimunda, é tudo a mesma coisa. Misericórdia, que homem fedido do cabrunco!
- Eu não sou fedido - reclamou o morador de Pau Miúdo, que era barbudo e usava calça social, uma camisa muito encardida e um chapéu de palha furado em alguns lugares.
- Imagina se fosse, meu filho - por mais incrível que pareça, Jana colocou um prendedor de madeira no nariz. - Acho que você não toma banho desde que saiu da maternidade, cruz credo!
- Eu tomo sim! Eu tomo banho no primeiro sábado de todo mês!!!

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