O Escolhido

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No dia do nascimento de Lienel, o único filho que Amelinda traria a esse mundo, quatro estrelas de fogo riscaram o céu, deixando um rastro flamejante que poderia ser visto de qualquer ponto do país, e caíram na terra. A noite, antes cálida e deturpada de cor, subitamente foi iluminada de tal forma que acreditaram ser dia e centenas de milhares de pessoas abriram suas janelas e saíram à rua para apreciar esse fenômeno lindo, catastrófico, aterrorizador. Elas tiveram certeza que o fim dos tempos havia chegado – o brilho no céu haveria de ser fogo celestial, o qual jorraria como chuva para incendiar a cidade profana!

Para Amelinda, mãe virgem de Lienel, aquele era o sinal sagrado de que seu filho era de fato o escolhido.

A profecia dizia que aquele cujo poder era tão grande quanto o do Imortal nasceria numa noite sem lua do ventre de uma virgem. A escuridão seria aplacada por quatro explosões de pequenos sóis, que iluminariam toda a vastidão do mundo, anunciando a chegada do salvador, o garoto nascido do Puro, com poderes e força gloriosos. Ele iria salvar o mundo das trevas do Imortal.

Na dita noite, Amelinda contorceu-se em êxtase, enterrando suas mãos nas das suas irmãs e vertendo lágrimas de alegria. O filho prometido pelo Puro respirava. Ele era uma pequena criatura delicada, seus cabelos escuros caíam sobre os seus olhos, que eram de um azul tão puro quanto à infinitude do horizonte que se encontra e se perde no mar. Ela beijou-lhe a testa e passou-o para os braços de suas irmãs, cada uma das seis donzelas repetiu o ato.

As quatro estrelas de fogo que caíram na terra transformaram-se em formas humanóides – eram anjos disfarçados de homens. Eles peregrinaram pelos quatro cantos do mundo por cinquenta e sete dias, avisando a todos os homens e mulheres que não mais precisariam temer, pois o escolhido vivia entre eles e era só uma questão de tempo para que ele crescesse e travasse a batalha final contra o Imortal. Ele iria vencer, porque o Puro jamais falhava. Após suas palavras atingirem mesmo os povoados mais distantes e remotos, eles chegaram à cidade de Arasaka, em Érnia, onde Amelinda vivia com seu amado filho. Eles tiveram um pequeno problema para encontrá-la, visto que Arasaka, como toda cidade de médio porte em Érnia, era composta por amontoados de prédios pregados uns aos outros, separados esporadicamente por vielas fétidas e ruas estreitas, superlotadas por estabelecimentos vazios, ocupadas por pessoas imundas e sem sorrisos. Cada prédio pelo qual passavam parecia exatamente como o anterior. Quando finalmente chegaram ao seu destino, haviam sofrido tentativas consecutivas de roubo cinco vezes, apesar de não terem percebido nenhuma delas. Nada foi furtado, pois nada tinham além dos panos finos que cobriam seus corpos. Como se os quatro fossem um só, subiram vinte e sete lances de escadas, até pararem ofegantes e ansiosos de frente para o apartamento que Amelinda e suas sete irmãs dividiam. Eles foram muito bem recebidos, com reverências, beijos na testa, mãos trêmulas em seus braços, olhos lacrimosos e grandes débeis sorrisos. As mulheres ofereceram-lhes o pouco de comida que tinham, mas nada que florescesse e morresse naquela terra poderia servir de alimento para a alma de seres celestiais.

O pequeno apartamento estava excessivamente lotado, de tal forma que três das irmãs mais novas ofereceram-se para esperarem do lado de fora. Os quatro anjos seguraram o escolhido em seus braços e beijaram-lhe a testa, sussurrando cada um o dom com o qual o presenteavam.

- Eu o abençôo com sabedoria para trilhar o caminho que lhe foi escolhido pelo Puro.

- Eu o abençôo com a minha força para vencer as tentações que lhe serão impostas pelo Imortal.

- Eu o abençôo com o poder e a língua dos primeiros filhos do Puro.

- Eu o abençôo com a visão para ver além da escuridão e da falsidade do Imortal e dos seus seguidores.

As mulheres pediram para que eles ficassem para o jantar, mas os quatro disseram na mesma voz que já haviam se demorado demais entre os mortais. Eles desapareceram no ar, deixando para trás somente os tecidos finos que cobriram a casca de seus corpos.

Lienel foi tirado dos braços da sua mãe aos três anos de idade e levado para um lugar seguro e secreto que não tinha nome nem localização, ele apenas existia em algum lugar entre Érnia e o resto do mundo. O garoto foi treinado pelos melhores mestres que existiam na arte da guerra. Ele cresceu para ser um exímio general, aquele que conseguiria de fato cumprir a profecia. Ele era de fato muito inteligente, perspicaz e habilidoso em qualquer tarefa que lhe impunham como prova. Assim como ele era igualmente orgulhoso, arrogante e narcisista, porque é isso o que acontece com homens que são criados ao redor de pessoas que o adoram e o veneram como se ele fosse um deus – e para elas, ele o era de fato. A ideia cresceu na sua mente: se ele era o filho do Puro, nascido de uma mãe virgem, ele era também um deus feito de carne, ossos e glória. Nada era o suficiente para ele, nada poderia impedi-lo; os homens se ajoelhavam diante de seu poder, os anjos seguiam seus passos e mostravam-lhe o caminho para o poder, e aqueles que ousassem ir contra a sua vontade eram massacrados.

Ele tinha amigos, mas ele não se importava de usá-los como fantoches no seu jogo de conquista. Ele via a todos como objetos dispensáveis cujo único propósito era servir à sua divina vontade.

Quando a Grande Batalha aconteceu, os dois deuses duelaram majestosamente e destruíram metade do continente enquanto tentavam aniquilar um ao outro. Ambos saíram feridos e inconscientes da batalha, mas vivos. Por doze anos, eles esperaram recuperarem-se das feridas mortais que receberam. Por doze anos, eles fortaleceram seus impérios, lançaram seus homens em guerras de conquista, e cada um dominou partes expressivas do mundo. Por doze anos, eles cultivaram suas imagens, controlaram seus povos, de tal forma que seus nomes de homem foram esquecidos e eles passaram a ser vistos somente pela armadura de deuses que vestiam.

O Escolhido tornou-se um ditador tal qual o Imortal, brilhante, cruel e insensível. O Puro ressentiu-se de sua criação e proibiu que qualquer anjo interferisse na guerra dos mortais. Ele os abandonou sozinhos para caírem em desgraça e miséria.

O EscolhidoWhere stories live. Discover now