Sapatos Voadores

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"As almas, sedentendas, se reencontram como velhos amigos que voltam de uma longa viagem." - Chico Xavier


Ele desceu as escadas em frente ao prédio e seguiu a ligeiros passos pela rua solitária, iluminada pelas escassas luzes amareladas dos postes.

Sentindo a respiração formar nuvens de fumaça a sua frente, envolveu ainda mais o cachecol azul ao redor da garganta e enfiou as mãos nos bolsos do pesado casaco.

O relógio de uma torre ali perto bateu, marcando o princípio da meia-noite e Nicolas sobressaltou-se ao se dar conta que era tão tarde. Não percebera como o tempo voara, mas fazia tantos anos desde a última vez que estivera no apartamento minúsculo de Sandro, jogado no sofá de couro rasgado e tomando latas de cerveja barata com os amigos, que desejara prolongar ao máximo um de seus raros momentos de divertimento nos ultimos anos.

Mas a reunião havia durado pouco para a maioria. "Os encoleirados", como definiu Sandro.
    
Antes, desafiar a ordem dos pais ou da fraternidade de chegar no horário correto em casa era algo rotineiro, mas a maioria já não ousava desafiar suas esposas, namoradas ou o que quer que tivessem lhes esperando nos colchões quentes e confortáveis dos seus lares.

E pouco a pouco, a sala foi esvaziando-se.

Restara Sandro e Nicolas, o solteiro convicto e o recém-divorciado, conversando sobre o rumo que cada um dos rapazes - não, homens - tinham tomado desde que se separaram após a formatura.

Casamento, filhos, felicidade, divórcio, desemprego, promoção, viagem, alcoolismo... Cada um parecia estar num estágio diferente, levando vidas tão distintas que sequer daria pra imaginar que teriam algo em comum, quanto mais que passaram juntos anos de suas vidas.

Uns encontraram a felicidade e a satisfação, enquanto outros permaneciam intricados em frustrações.
   
A calvíce já atingia alguns e Carlos parecia ter engravidado junto com a esposa, que esperava o terceiro filho. Talvez por solidariedade - dizem que as mulheres ficam estressadas quando sentem-se mais gordas que o marido. Ou talvez seja só o bom e velho chope do fim de semana.
      
Até unhas pintadas de rosa,    Pedro tinha. "Minha filha mais nova", ele explicou. E Nicolas, que precenciara Pedro deixar dezenas de  corações partidos aos prantos, sem o menor remorso ou sentimento, vira-o agora derreter-se todo ao falar da sua princesinha.

A vida era mesmo uma montanha-russa mirabolante, uma roda-gigante que nunca para, uma caixinha de surpresas...

Ele manteve metade da cabeça refletindo sobre a noite, enquanto a outra metade permanecia atenta à rua.

Sabia que andar por ali aquela hora era como pôr um sinalizador para assaltantes e semelhantes, mas os únicos sons audíveis provinham dos cães e gatos que vagavam pela noite escura, vasculhando latas de lixo e arrumando brigas.

Ao dobrar a esquina de um prédio de tijolos vermelhos, entretanto, ouviu um som abafado de música. A porta do barzinho que ele frequentara incontáveis vezes quando jovem se abriu e o cheiro familiar de cigarro caro, álcool e perfume saiu de lá junto com risadas altas.

Antes que pudesse formular um pensamento ou ao menos piscar os olhos, foi atingido por algo ligeiramente vermelho e pontudo na cabeça.

Levou a mão direto as têmporas, esfregando-as e sentindo uma tontura pela dor repentina.

- Ai meu Deus! Desculpe. Desculpe. - gritou a mulher, correndo até o homem que havia acertado - Foi sem querer, desculpe. Eu só ia jogar, aí do nada você apareceu. Assim, puff. Mas eu sinto muito. Mesmo e...

- Certo, calma. - ele removeu as mãos quentes que apalpavam seu rosto gelado, mas ela continuou desculpando-se e praguejando com a fala meia enrolada de alguém que com certeza tinha bebido.

A mulher se abaixou para pegar um salto alto vermelho, escorando-se no  homem para calça-lo entre pulinhos desequilibrados, ainda falandi e gesticulando.

- Espera, você me acertou com um sapato? Sério? - perguntou, incrédulo.

- Não um sapato. - ela ironizou - É um “marcadosapato”. É mais do que um simples sapato. E já disse que foi sem querer, eu só joguei e você apare...

- Se é um "mds", - foi a vez dele ironizar - por que você o jogou?

A mulher se endireitou, colocando os cabelos para trás e olhando-o seriamente, como se estivesse prestes a lhe contar um segredo de Estado.

- Saltos... são uma grande droga. Eles fazem calos e machucam. Eu só estava irritada e joguei. Mas estou pegando de volta,  porque eles custaram mais da metade do meu salário. Quando eu ainda recebia um salário. - ela riu descontroladamente e só então ele notou quem era ela.

Estava mais alta, usava maquiagem agora, os cabelos longos de outrora paravam nos ombros com um corte reto e elegante e tinha inegáveis rugas ao redor dos olhos, denunciando os sinais do tempo.

Mas o sorriso mantinha-se jovial e aceso, brilhante e incandescente como um farol.

E aquela risada... Ah, era inconfundível.

- Enna? - perguntou incrédulo, pois ele achou que nunca mais a veria.

E a mulher olhou-o chocada, porque tinha plena certeza que nunca mais na vida seria chamada novamente daquele jeito.

Somente uma pessoa a chamava de Enna e era...

- Não acredito! Nicolas?

O seu primeiro e único namorado sério, de dez anos atrás.

Todo o Tempo do MundoWhere stories live. Discover now