Capítulo 1

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O fogo se alastrava pelas longas cortinas brancas trazendo uma fumaça negra para dentro do enorme hall sustentado por uma dúzia de pilares de mármore. O cheiro de queimado começava a inebriar os sentidos da garota que lutava para conseguir chegar à escada que levava até o andar de cima. Ela se jogou em cima de um guarda que agredia um aliado estático no chão. O homem caiu para trás com o peso da garota batendo a nuca no piso reluzente. Apesar de jovem e franzina, ela tinha um lado destemido que surpreendia seus oponentes. Com agilidade esticou o braço para se apoderar da espada que o guarda havia deixado cair, e, ao perceber que o homem uniformizado tentava erguer o corpo ainda cambaleante, desferiu nele um golpe definitivo no rosto.

– Venha! Precisamos seguir em frente! – Ela disse esticando a mão para o companheiro caído.

Assim que chegou ao primeiro degrau da escada, um grupo de três guardas postou-se entre ela e o andar de cima. Espadas, lanças, maças apontadas para a garota em tom ameaçador. Ela se virou para trás, buscando ajuda, mas, pela primeira vez, percebeu a verdadeira proporção daquela invasão. Diversos núcleos humanos espalhados pelo hall estavam engajados em pequenas batalhas particulares e distintas. Em um canto, seus companheiros invasores haviam prevalecido e um mar de soldados uniformizados amontoava-se no chão do palácio. Do outro lado, as coisas se invertiam e dezenas dos seus companheiros acumulavam-se inertes no solo de mármore, destinados ao esquecimento do limbo histórico reservado aos anônimos caídos em batalha.

A garota voltou a focar a atenção nos homens à sua frente. A ajuda não viria, e ela não podia se dar ao luxo de desistir agora. Não quando tantos haviam dado sua vida para que alcançasse seu objetivo. Marchou firme em direção aos três oponentes, que, com um ódio visível que brilhava em seus olhos, pareciam ansiar por aquilo.

– Não! – Uma voz eclodiu do lado direito da escada tortuosa. – Você não pode enfrentá-los! Sua missão é outra!

– O Chanceler está lá em cima! Eu tenho que subir! – disse a garota, ao companheiro que surgiu do seu lado.

– Não se preocupe, você irá subir!

O garoto assoviou e mais dois colegas apareceram. Um deles, pálido como a neve. Os três urraram ao correrem na direção dos homens bloqueando a passagem. Deixaram a menina para trás e, armados, jogaram-se contra espadas, lanças e maças. O barulho das armas já servia como indício para que ela prosseguisse com sua missão, mas, mesmo assim, a voz do garoto pareceu acordá-la de um transe.

– Corra! Agora!

A garota obedeceu à ordem do colega, passando imaculada pela pequena disputa que ocorria nos degraus da escada. Em pouco tempo, chegou ao topo da escada, deparando-se com um pequeno hall de pedra que funcionava como antessala para uma enorme porta de madeira. Trancada.

Não levou muito tempo até que seu amigo estivesse novamente ao seu lado.

– Onde estão os outros? – disse a garota, e, mesmo antes de qualquer resposta, uma feição amarga assombrou-lhe o rosto ao olhar para baixo. Nada mais precisava ser dito. – Oh, Deus! O que estamos fazendo aqui? Todos estão morrendo. E por quê?

O garoto pegou-a pelo braço, chacoalhando-a com força.

– Você sabe muito bem o porquê. Todos que estão aqui sabiam do risco que corriam. Vieram dispostos a dar a própria vida para que sua missão fosse cumprida. Agora, afaste-se. Vou arrombar essa porta.

A menina encostou-se na parede ao lado, testemunhando cada golpe de espada desferido contra a madeira maciça. Lá embaixo, os gritos de dor tinham o efeito de lanças pontiagudas em seus pensamentos, atormentando-a para que encontrasse uma solução o mais rápido possível e, assim, acabar com todo aquele sofrimento. Percebeu que a dezena de golpes do garoto havia causado pouco mais que pequenos arranhões no alvo, e sabia que o tempo jogava a favor do inimigo. Quanto mais ela demorasse, mais cresciam as chances de insucesso. Empurrou-o para o lado antes que mais um golpe inócuo fosse dado.

– Deixe comigo! – Ela disse, fechando os olhos e se concentrando.

– Não! Você não pode fazer isso! – Ele gritou.

– Olhe lá para baixo. Quanto tempo acha que temos? Quanto tempo acha que eles têm?

O garoto pareceu compreender seus motivos, mas, ainda assim, alertou-a.

– Você pode morrer se usar demais o seu poder. Não sabemos o que nos espera lá dentro. Você tem que economizar cada pingo de energia que ainda tem.

A garota abriu os olhos e aproximou-se dele. Colocou a mão em seu rosto com uma ternura que, pouco tempo atrás, jamais imaginaria sentir por alguém. Não conseguia se recordar de algum dia em que se sentisse tão plena quanto agora. Mesmo dentro de um cenário tão trágico.

– Minha vida não vale mais do que a de ninguém – ela disse, apontando para os companheiros caídos no hall lá embaixo. – Sou igual a qualquer um de vocês. Muitos perderam suas vidas aqui hoje, e seria uma honra juntar-me a eles.

– Tenha cuidado – ele murmurou. Os olhos inundados. – Demorei muito para encontrar você.

Ela aproximou seus lábios dos dele, colando-os por não mais que um segundo.

– Não se esqueça de mim, ok?

– Nunca! – ele respondeu. Ela sorriu.

Sem dizer mais nada, fechou os olhos e concentrou-se na frente da porta. Em pouco tempo, os cabelos voavam para trás acompanhando o vento circular que vinha de lugar indefinido. O corpo tremia. De súbito, a porta do quarto abriu-se, lentamente, abrindo-lhe passagem como se estendesse um tapete vermelho. Lá dentro, um homem vestido com uma túnica dourada, adornada por um manto vermelho, estava sentado na cama. Sobre a cabeça, uma coroa de tecido, pedras preciosas e pérolas acompanhavam a ostentação presente no cetro dourado que carregava na mão direita.

A garota entrou no quarto e virou-se para o rapaz do lado de fora antes que a porta fechasse.

Do seu nariz, escorria um filete de sangue. 

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