Capítulo único

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A vida era bela.

Ela era bela no jeito que você timidamente ajeitava essa mecha rebelde do seu cabelo quando alguém te fazia um elogio. Ela era bela no jeito que você me abraçava como se não houvesse amanhã e me tirava de órbita – nem que fossem por alguns míseros segundos de êxtase em que o mundo poderia acabar e eu não daria a mínima. Ela era bela no jeito que dividíamos um sanduíche de restos da geladeira no meio da madrugada porque você decidia me fazer companhia numa dessas noites de insônia aí. A vida era bela no jeito que você não fazia a barba porque sabia que quando ela começasse a crescer, faria de mim sofá contra unhas de gato.

Mas, principalmente, a vida era bela no reflexo do seu olhar.

A vida foi linda quando você passou e virou tudo de cabeça para baixo. Nada foi ou – creio eu –algum dia será perfeito depois de você.

Quero te contar uma coisa que você talvez não saiba: ontem tomei um porre de nós dois. Me embebedei do nosso passado, injetei as promessas para o nosso futuro. Dei um tapa no que era minha vida antes de te conhecer para ver se curava isso que eu tentei aniquilar me envenenando da gente. Tudo que consegui foi uma baita de uma ressaca.

Fiquei lendo as cartas, vendo os vídeos e fotografias dessa nossa empreitada mal sucedida de relacionamento. Do primeiro dia, do nosso primeiro encontro, da coisa mais bela que já vi e acredito que verei na vida.

Não me tome por cínica. Sei que há um ápice nas nossas vidas onde a nostalgia passa a sobrepujar quaisquer bons momentos que venham ao nosso encontro. Porém, posso lhe dizer com toda a certeza do mundo: não é nostalgia. Não é (só) saudade. É o amor – que foi e que acredito ainda ser o motivo pelo qual fui incapaz de jogar tudo num limbo do esquecimento, mesmo depois de tanto tempo, e mantive nossas fotografias guardadas num daqueles cantinhos da casa em que propositalmente colocamos coisas com as quais não conseguimos lidar mas também nos recusamos a descartar.

Suas fotos, não posso me desfazer delas como se fossem lixo. São a única lembrança que tenho da coisa mais linda que já vi na vida.

Quero pintar essa foto que tirei dos seus olhos na parede do meu quarto. No teto. Tatuar no pensamento e na alma esses teus olhos castanhos. Quero bradar aos sabe-se lá quantos ventos que mesmo que eu perca a noção de tempo, espaço, vida ou morte eu ainda guardarei a imagem mais bela que já vi e provavelmente verei nesse mísero tempo que a biologia me concede para dividir experiências com o mundo: seus olhos.

Existem aqueles momentos em que o Universo conspira para que algum evento aconteça nessas nossas insignificantes "humanices".

As pequenezas da vida são as coisas que a tornam tão fascinante, e de tudo que poderia ter me acontecido naquele fevereiro chuvoso, eu fui presenteada por uma obra do acaso com você encharcado na porta do meu bar perguntando se poderia usar o telefone. Você levantou o olhar por baixo daquelas mechas brilhantes e, pronto, a merda já estava feita. Minha dopamina, minha ocitocina e todas as outras inas simpatizaram contigo, rapaz. As palavras engasgaram na garganta e eu fiquei ali embasbacada com aquele seu olhar enquanto minha colega lhe entregou o celular. Mais tarde nós rimos horrores dessa vez que fiquei muda te encarando como se fosse uma louca.

Lembro que você, com um meio sorriso maroto no rosto, ajeitou uma mechinha que insistia em ficar colada na sua testa. Foi quando percebeu o jeito como eu estava te encarando. Você sentiu o afago no ego, né, seu vaidoso?

Naquele dia você sentou numa das mesas do bar e pediu um café enquanto concatenava o que iria fazer em seguida – você estava abarrotado de compromissos, não era nem hora do almoço e seu celular te deixou na mão. Lhe servi café umas 2 vezes antes de você parar de me secar e finalmente fazer uma pergunta ou tecer um comentário. Eu provavelmente estava vermelha feito um tomate – por que você nunca me contou se eu realmente estava corada ou não?

Mas eu também nunca te contei uma coisa: aquela área do bar onde você sentou era da minha colega e ela, cupido que só ela, me pediu para lhe atender porque "tinha várias outras tarefas importantes", como, por exemplo, ficar jogando candy crush e nos olhando de longe. Não reclamei, fui para conseguir mais uns momentos de admiração por aquele teu semblante indecifrável no meio dos aborrecimentos cotidianos.

Lia, ah, doutora que só ela... O diagnóstico foi certeiro: era amor. Casaríamos, teríamos uma casa com jardim, filhos, cachorro e tudo ao que uma vida de comercial de margarina dá direito.

Mas Lia se precipitou.

Lia não imaginou que o emaranhado das nossas vidas, rapaz, fosse tornar a missão em busca do "final feliz" tão árdua, e fosse nos cegar a ponto de perseguir o final feliz a duras penas quando o que precisava ter sido nossa prioridade no quesito "diversão" e "proveito" em primeiro lugar era a jornada até depois do arco-íris.

Os desentendimentos bestas. O quanto nos esforçávamos para que tudo fosse perfeito e na direção correta. Os nossos momentos mais bonitos foram aqueles nos quais não precisamos nos esforçar para deformar nosso relacionamento aos nossos caprichos. E sempre teus olhos... sempre eles ali me dando um nó na garganta e fazendo esquecer das minhas mágoas quando você decidiu finalmente me largar para afundar sozinha no Titanic da nossa história.

Não lembro bem como terminamos. Nem lembro da nossa última conversa. A bem da verdade, fiquei assim meio incompleta depois que você foi embora e carregou um pedaço da minha vida junto contigo. O pedaço que fazia juras de amor me encarando com a visão mais "ladra-de-fôlego" da Via Láctea. O pedaço que tornava os dias mais coloridos.

O pedaço mais belo que já tive nesses trinta e poucos anos.

Hoje emoldurei seus olhos na cabeceira da minha cama e pretendo dormir com seu olhar até que algum dia o impossível aconteça: eu ver outra coisa "mais bela da minha vida" uma vez mais.

E que essa seja para ficar porque não aguento mais o fantasma da ausência dos teus olhos.


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⏰ Last updated: Jan 26, 2016 ⏰

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