Hora extra não remunerada

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Começava a escurecer e o vigilante se aproximou, ansioso.

– Não gosto de deixar a Iolanda sozinha, seu Luciano, ela pode precisar de mim de repente.

A mulher do Edélcio estava no fim da gravidez. Moravam num lugar isolado e para a maternidade eram trinta quilômetros de estrada de terra, considerou o gerente.

– Tudo bem, seu Edélcio. Vai, deixa as chaves comigo que eu me responsabilizo e fecho tudo. Tenho que terminar a porra dessas planilhas e enviar, senão estou ferrado.

O segurança agradeceu e deixou as chaves. Era irregular, mas ele estava mais preocupado com a Iolanda e com a filha por nascer do que com os regulamentos e, se fosse o caso, o emprego. Luciano não pôde deixar de lhe dar razão. Se tivesse pensado como ele, talvez não fosse gerente, mas ainda estaria casado. Agora só tinha uma casa vazia, muitas saudades e um emprego em regra entediante e nas exceções estressante, como naquela semana.

Os turistas tiravam o seu sossego ao buscar o deles. Os oito funcionários da agência de Vila Alta da Serra ficavam ociosos a maior parte do ano e sobrecarregados no fim do ano e nos feriadões, sem meio termo. E quando um feriadão coincidia com a virada do mês, como acontecera naquele dia, era um Deus nos acuda. Passou o dia a atender donos de pousadas, restaurantes e lojinhas de artesanato com dificuldades para pagar dívidas e fornecedores. Não sobrou tempo para o relatório especial que a assistente do Superintendente cobrara por SMS. Tinha de estar no e-mail dela amanhã cedo, o mais tardar.

Ouviu o Edélcio sair sem se preocupar. Já ouvira falar de colegas sequestrados ao fazer serão, mas em seus dez anos na Vila, nada houvera de mais grave do que uma briga de bêbados. Sequer havia previsão para porta giratória e câmeras de segurança nos caixas na sua agência. Devia ser uma das últimas na lista de prioridades do banco, que nem por isso deixava de cobrá-la como se estivesse na Avenida Paulista com oitenta funcionários e com a mesma pontualidade. Totalizar as estatísticas sem uma agência que fosse era impensável.

Concentrou-se e, meia hora depois ou pouco mais, ouviu um ruído estranho e repetitivo. Uma série regular de estalidos, que parecia vir do lado dos caixas, no fundo da pequena agência. Ficou intrigado, mas supôs ser algum inseto, esforçou-se por ignorar e prosseguiu na checagem das planilhas. A soma teimava em não bater com...

O estouro repentino quase fez o coração lhe saltar pela boca. Um tiro ou uma bomba, pensou ao largar o teclado e se esconder debaixo da mesa. Mas o ruído cessou, não aconteceu mais nada por um ou dois minutos e ele tentou olhar cautelosamente. Não viu nada nem ninguém. Nem fumaça ou coisa assim. A luz e o ar condicionado continuavam a funcionar.

Apalpou o celular no bolso, mas desistiu de usá-lo. E se houvesse alguém escondido, disposto a matar? Não havia polícia na Vila e levaria quase uma hora para ela chegar da cidade, se atendesse de imediato. Mas não podia ficar ali a noite toda, pulso disparado, esperando sabe-se lá o quê. Foi pé ante pé, pronto para lançar mãos ao alto ao primeiro movimento. Para sair, era preciso passar pela frente dos caixas, pois uma parede separava a gerência do hall.

Ao se aproximar da bateria de caixas –três guichês –, percebeu um rangido surdo e continuado atrás do último deles. Não viu mais nada e começou a ganhar coragem. Se fosse alguém armado, já teria se mostrado, pensou.

Arriscou uma olhada para dentro da terceira divisória de vidro e esfregou o rosto, em dúvida sobre se era um sonho. A bancada estava deformada e partida, terminal e gavetas caídas no chão. Algo parecido com uma raiz de planta parasita crescia sobre os pedaços a partir da fenda no meio da mesa e a abria lentamente, daí o rangido.

Era estranho, mas não havia perigo óbvio e a curiosidade venceu o medo. Abriu a porta dos caixas para ver do outro lado. Algo como uma enorme pera invertida crescia no chão, debaixo da bancada partida. Ramificações brotavam da base e dos dois lados, cobrindo o chão e a divisória e envolvendo a banqueta tombada. Crescera em menos de quatro horas, pois a Rafaela se sentara ali até o fim do expediente. Aproximou-se e notou que os ramos e gavinhas escuras não cobriam apenas os objetos, penetravam neles e avançavam, lentas como lesmas.

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