Parte 1: O Fim da Infância.

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Era mais um dia rotineiro na minha vida. Eu e os outros dois agraciados, Ricardo e Belina, deveríamos explorar as regiões próximas a Ignis para encontrar poças de Água da Vida. A última chuva durou apenas uma semana, e apesar de termos coletado bastante, a demanda era muito grande. Água da Vida era tudo! É dela que a magia emana, é com ela que curamos nosso povo e limpamos a terra da radiação, e sem ela eu e meus colegas batedores teríamos morrido ainda crianças.

Por sorte éramos descendentes dos fundadores de Ignis, então recebemos doses generosas dos estoques de nossas famílias. Um luxo para poucos, e graças a isso conseguíamos desenvolver a magia de uma maneira mais natural; agraciados, especiais. Tínhamos o dom natural de localizar Água da Vida.

Mas apesar de todo o precioso líquido que recebi, meu corpo permaneceu frágil. Eu tinha vinte e dois anos, e dos três agraciados era a menor, e era extremamente tímida. A verdade é que nunca me achei grande coisa: magricela, cabelos pretos ondulados sempre presos em uma trança que chegava até minhas costas, os olhos quase negros e a pele cor de caramelo. Em contrapartida, Belina era uma guerreira nata: alta, forte, extrovertida, cabelos vermelhos como o fogo e pele alva como a neve. Ela sonhava em entrar para a Legião, e com certeza seria escolhida, pois sempre terminava em primeiro lugar nos testes. Ricardo não ficava para trás: loiro, esbelto, forte, olhos tão verdes quanto o céu e era filho de Nestor Campanaro, o administrador e regente de Ignis. Ricardo era cobiçado por quase todas as moças e por alguns rapazes também, mas nunca me atraiu, para mim não passava de um convencido, metido a valentão, as vezes até covarde; só me respeitava por eu ser uma agraciada e minha família ter influência no governo. Belina gostava dele, mas negava até a alma se fosse confrontada, e acredite em mim, você não iria querer confrontá-la. Esses dois eram o que eu podia chamar de amigos, não por livre escolha, mas porque fui forçada a treinar com eles, a crescer com eles.

Estávamos bem ao sul de Ignis e cada um pegou um quadrante para explorar, como determinado por Ricardo. Os dois ficaram juntos e eu fui mais para o sul, em direção a uma grande construção antigamente chamada de Shopping Center. Eles conseguiam se comunicar pela telepatia, eu não, então eu usava um rádio. Podíamos sentir a presença um do outro e Ricardo era mestre nisso. E ele também podia enxergar onde estávamos como se tivesse um mapa na cabeça, se quisesse, conseguiria até entrar em nossas mentes e ver por nossos olhos, chegava a ser assustar.  Então o chato entrou na minha mente, como sempre me questionando:

- Ei, Isabel Meliard! Para onde a senhorita acha que está indo?

Peguei o rádio.

- Estou indo para o Shopping, tive uma intuição, acho que tem muita Água da Vida armazenada por lá - respondi apática.

Ele meio que tentou engrossar a voz:

- Não tem nada lá, sua tonta! Você tá é se arriscando, a matilha de dragos fica aí perto, e eu não vou salvar sua pele se você topar com eles!

Ouvi risos, Belina entrara na conversa.

- Pode deixar, Ric, qualquer coisa eu resgato ela e ainda pego alguns dragos, quem sabe a gente não faz um churrasco, hein?

- Eu sei me cuidar, gente! - interrompi.

Peguei um cristal de musgravite e o apertei com força. Fechei os olhos e me concentrei. Os risinhos na mente desapareceram. O musgravite tinha essa propriedade, cortava as invasões mentais. Eu descobri isso graças aos livros da Legião, os devorava nas horas livres.

Enfim me livrei daqueles chatos. Mas o reizinho estava certo em uma coisa: eu queria encontrar a matilha de dragos, especialmente um deles: Prateado!

Ninguém em Ignis sabia, mas eu tinha desenvolvido uma ligação afetiva com um drago, com um temível Lobo-Dragão! Foi meio que por acaso: estava no Vale das Sombras quando fui surpreendida por dois deles. Me cercaram, e fiquei com tanto medo que deixei o rádio cair. Sabia que na Europa soldados da Legião tinham domesticado esses animais. Usei boa parte das minhas energias místicas tentando me comunicar. Fiquei surpresa, pois um foi embora e o outro, que chamei de Prateado, ficou ali do meu lado me olhando curioso.

Assim nasceu nossa amizade, e sempre que podia levava doces para ele, acho que por isso ele gostou de mim, devido aos doces da minha prima!

Tentei sentir a presença de meu amigo ou de sua matilha, sem sucesso. Ele deveria estar caçando em outro lugar, pensei. Então entrei no shopping. Segui por uma galeria. Senti uma vibração no ar: Água da Vida! Eu estava certa!

O "sinal" emanava do esqueleto de concreto de uma grande loja, que ficava no final da galeria, uns quarenta metros a minha frente. Comecei a correr, então a voz de Ricardo voltou , mas dessa vez o tom era de medo, de urgência, senti um calafrio e parei; ele estava apavorado:

- Isa! Sai dá aí agora! Volte imediatamente para Ignis!

Meu coração acelerou, então Ricardo me mandou uma visão, a imagem  formou-se diante de meus olhos: Belina era atacada por dois Hellwegs! Não, aquilo era impossível! Hellwegs nos territórios da Legião? O corpo dela flutuava no ar, os braços e pernas esticados, um dos inimigos a golpeou com uma espada, pelas costas. Caí de joelhos, a visão se foi e a presença de Ricardo junto com ela.

Por todos os Deuses... Hellwegs, caçadores que trabalhavam para a Irmandade de Dagda, como haviam conseguido penetrar nas barreiras astrais? Só pensei em sair dali o mais rápido possível e voltar para Ignis, precisava alertar a milícia. Me levantei e comecei a correr pela galeria, então o vi: um aterrorizante Hellweg estava parado bem na minha frente. Usava um hábito negro e sua máscara de ferro em forma de caveira ocultava seu rosto. Ele tinha uns dois metros de altura. Começou a avançar devagar, os passos decididos. Lembrei das muitas aulas que tive sobre os nossos inimigos: Hellwegs eram especialistas em remover o sangue do corpo, pois é no sangue que a Aguá da Vida reside, no sangue dos bruxos. Respirei fundo e comecei a conjurar uma esfera de energia.

Esperei que ele chegasse mais perto, então fechei as duas mãos sobre a carga, girei meu corpo e a lancei. O desgraçado foi mais rápido, e não sei como, esquivou-se. Então me acertou com uma onda de choque que me fez voar por uma grande distância; caí de costas no chão fragmentado. Quando me dei conta, o Hellweg estava atrás de mim, e rapidamente me pegou em uma gravata. Senti sua foça sobrenatural pressionando meu pescoço, comecei a me debater desesperada, então me concentrei, produzi outra esfera de energia e a pressionei contra a perna dele. Ela explodiu liberando um brilho cegante, o que o fez me soltar, fui lançada longe, caindo de bruços de bruços no chão, meu pescoço latejava.

Consegui apenas provocar-lhe uma pequena ferida. Logo empunhou a espada. Vi a morte refletida naquela lâmina, o pavor apoderou-se de mim e meu medo parecia fortalecê-lo. O Hellweg flexionou o braço, posicionando a arma para cortar minha cabeça. Comecei a chorar copiosamente; lembrei de Belina, o mesmo destino me aguardava...

Então, subitamente, quando o inimigo estava prestes a deferir o golpe mortal ele estancou. Vi apenas um vulto imenso saltando sobre mim, e logo em seguida o grito horripilante do Hellweg. Som de metal tocando o chão. Me levantei apressada e quando olhei não pude acreditar: Prateado estava em cima do homem! Devorando suas entranhas, enchendo o piso do shopping de sangue e tripas. Graças aos Deuses! Meu amigo Lobo-Dragão salvara a minha vida!

Peguei o rádio e tentei contatar Ricardo, mas só havia estática. Prateado se banqueteou com o Hellweg,  e eu fiquei preocupada, pois poderiam haver mais invasores. Felizmente nenhum outro apareceu. Saímos do prédio. Passamos pelo Vale das Sombras e chegamos ao ponto de encontro previamente definido por Ricardo. Senti um calafrio, haviam mais inimigos por perto.  

Me escondi em um prédio destruído, orientando meu amigo a fazer o mesmo. Por uma pequena báscula pude observar, incrédula, um grupo de Hellwegs carregando o corpo murcho de Belina; haviam tirado todo o sangue dela. Então veio o pior, não acreditei quando vi Nestor Campanaro, o pai de Ricardo e regente de Ignis, apertando as mãos de um daqueles monstros. O desgraçado havia nos vendido! Havia traído a Legião! Como ele pôde entregar seu próprio filho? E foi ali que eu soube que Ignis estava perdida. Chamei Preteado e começamos a voltar, minha esperança era que Ricardo ainda estivesse vivo, eu tinha que encontrá-lo, mas antes precisava recuperar as energias. Lembrei da minha família, e senti um pesar no coração. Eu tinha que fazer alguma coisa.



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