Prólogo

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Era noite, o céu estava coberto de estrelas, e a lua estava cheia. Não se ouvia som algum além do canto das cigarras, e do vento soprando. A noite estava bela. Mais bela do que qualquer outra noite já vista.

No entanto, não havia ninguém apreciando aquela vista. Ninguém para vê-la se esgueirando pelas sombras, correndo contra o tempo e tentando dominar o medo que a estava dominando.

Sua roupa de hospital já não estava mais branca. Agora estava suja de lama e terra. Mas ela não estava preocupada com isso. O que importava mesmo era o lençol em seus braços, ou melhor, o que estava enrolado no lençol.

Ela abaixou um pouco o pano branco que cobria seu bem mais valioso, e lá estava ela. Era o bebê mais lindo que ela já tinha visto. Tinha a pele clara, cabelos escuros e espessos, e olhos grandes de um tom castanho que só poderia ter herdado da mãe.

Ela sorriu com a visão da criança em seu colo, mas logo depois começou a chorar. Ela teria que deixá-la. Teria que deixar seu bebê.

Em alguns momentos, para aliviar a dor, ela pensava que estava apenas a deixando na casa de alguém, porque iria trabalho e não poderia levá-la, mas que iria buscá-la assim que chegasse.

Mas ela não conseguia se enganar por muito tempo. Ela não a deixaria temporariamente. Era para sempre. Ela nunca mais veria seu bebê, e aquilo doía tanto que ela podia jurar que estava morrendo.

Mas ela tinha que ser forte, tinha que se manter em pé. Ela não podia se entregar e permitir que a alcançassem. Se isso acontecesse... Ela não gostava nem de pensar no que aconteceria a sua filha se algo desse errado.

A cidade pequena no interior do Brasil havia sido uma boa escolha, ela nem mesmo existia no mapa. Seria difícil alguém encontrá-la ali. Mas ela tinha que agir rápido. Se demorasse muito, eles iriam sentir e ir atrás dela, e nenhum esforço seria o suficiente para proteger sua filha.

Ela queria tanto prolongar o tempo que tinha ao lado de seu bebê... Mas ela não poderia fazer isso. As consequências eram gritantes. Estes eram os últimos minutos, e depois ela iria desaparecer para sempre.

Ela virou para a direita e entrou em um beco sem saída entre duas casas, e resolveu que seria ali mesmo. Era o melhor lugar. Em algum momento, alguém em uma das casas descobriria o bebê, e talvez até cuidassem dela.

Oh, por favor. Que cuidem dela, a mulher pediu silenciosamente.

Em uma das paredes havia um grande contêiner de lixo. Ela não queria deixar seu bebê ali. Na verdade, ela não queria deixar seu bebê. Mas era o lixo, ou o chão.

Ela embrulhou ainda mais seu bebê e o colocou em cima de um saco de lixo, tomando todo o cuidado para deixá-la em um lugar onde ela não cairia, caso se mexesse.

Ela deu uma olhada em seu rostinho mais uma vez. Ela estava acordada, com seus grandes olhos fitando a mãe. A mulher sorriu e passou a mão pela cabecinha da garota.

- Eu sinto muito, meu anjo – ela disse – Eu não queria te deixar, mas é o melhor para você. Eu tenho que te proteger deles – ela sorriu.

Um barulho veio de trás, e ela olhou alarmada, já se preparando para encontrar um deles, mas era apenas um gato no meio do lixo. Ela se voltou para o bebê com o coração na mão.

- Eles vão te encontrar, meu amor – ela passou o dedo pela bochecha gordinha da garotinha – Aqueles que vão te proteger. Eles são pessoas como eu, e como você será um dia também. Eles vão te encontrar e vão te proteger – ela começou a chorar e encostou sua testa na minúscula testa da garotinha – Eu queria tanto poder ser sua mãe. Tanto... Mas eu não posso... – ela deu um beijo no nariz da criança – Espero que um dia você me perdoe.

Ela se afastou do contêiner e começou a procurar por algo no chão. Dentro de uma lata de lixo, ela achou o que procurava. Um pedaço de vidro quebrado. Voltou até o contêiner, até seu bebê, e aproximou seu rosto do dele, dando um beijo em sua testa.

- Eles vão te achar – ela falou – Eu vou ter que te esconder dos outros, daqueles que querem te machucar, então vai ser mais difícil para eles te encontrarem. Mas eles vão te achar, eu prometo – ela deu mais um beijo na garotinha e se afastou um pouco.

Com o pedaço de vidro quebrado que estava em sua mão, ela cortou o pulso, soltou o vidro da mão e melou o polegar com seu próprio sangue. Depois ela aproximou o polegar ensanguentado de seu bebê e desenhou um símbolo em sua testa.

Era um símbolo simples. Tratava-se de um círculo e, dentro desse círculo, ela desenhou quatro cruzes que, unidas, formavam uma cruz maior.

- Eu te amo – ela disse em meio às lágrimas e começou a recitar as palavras em latim.

"Ego meam

In specie sacrificium

Magis quam tueri bonum"

Enquanto ela recitava as palavras, o símbolo na testa da garotinha, da qual ela não tinha tirado os olhos, começava a desbotar, desaparecendo gradativamente.

"Scutum meum in sanguine tuo

Quod non agnoscere nequitiae

Et lux illa in se est, semper

Ut non frustra victima"

- Eu te amo – ela disse uma última vez à garotinha na lixeira.

Então ela começou a brilhar em um tom dourado, como se fogo estivesse vindo de dentro dela. Em poucos segundos, enquanto ela ainda olhava a garotinha, ela foi consumida por toda aquela luz, e explodiu, deixando mais nada que um grito estridente no ar, e uma garotinha perdida. Não havia sobrado mais nada.

O bebê no meio do lixo começou a chorar. A marca já não estava mais em sua testa. O sacrifício de sua mãe não havia sido em vão. Agora ela estava protegida.

O choro dela ecoou pela noite vazia. Alguns minutos depois, a porta da casa à esquerda se abriu, e um casal saiu de lá com uma lanterna na mão. Eles adentraram o beco e seguiram o choro do bebê.

Eles se aproximaram com cuidado, olhando ao redor, procurando por alguém. Aquele bebê não tinha ido parar ali sozinho. Mas não havia ninguém. O bebê tinha sido abandonado.

A mulher desenrolou o lençol do corpo frágil do bebê, e sorriu para o marido.

- É uma garotinha – ela disse.

Ela inclinou a cabeça para o lado, analisando o bebê de outro ângulo. Então ela viu algo escrito no lençol.

- Olha! – ela virou a toalha de lado para enxergar melhor – Santa Bárbara – ela disse, lendo o nome no lençol – É um hospital não muito longe daqui. Ela deve ter nascido lá.

- O que vamos fazer com ela? – o marido perguntou.

A mulher a pegou no colo e a enrolou novamente no lençol. O choro diminuiu para apenas soluços. A mulher sorriu.

- Ela é tão linda – ela disse e olhou para o marido – Vamos ficar com ela.

- Tem certeza disso? – ele perguntou, inseguro.

- Claro que tenho – ela não parava de sorrir para a garotinha – Ela precisa de uma família. Nós seremos sua família.

E assim eles entraram em casa, levando a criança em seus braços e atendendo ao último pedido de sua verdadeira mãe. 

Aurora SilenciosaOnde as histórias ganham vida. Descobre agora