Ato 1 | Gelo

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"Mais facilmente se julgaria um homem segundo os seus sonhos do que segundo os seus pensamentos."

Victor Hugo

O fundo do mar é mais escuro do que se imagina. O silêncio ensurdece. A solidão esmaga. Busquei a fuga, mas meus passos pesados me mantinham no ponto mais profundo do oceano. Quis a fuga, mas para onde? Não para a superfície. Ar não me interessava: era a água que me trazia vida. Estiquei um braço à frente e notei, com leve sobressalto, que eu não era o mesmo: minha pele estava azul e havia pequenas membranas entre meus dedos, agora um pouco mais longos. Listras mais escuras formavam padrões tribais em meu braço e por todo o meu corpo. Respirei fundo e senti a água entrar por minha boca e atravessar minhas guelras, enchendo-me de vida.

Atraído pela voz que me movia, lancei o corpo para o alto e, livre, girei em torno de mim mesmo, dobrando a água que me circundava e alcançando mais rapidamente a superfície. Era inevitável. Aceitei.

Meus olhos surgiram sobre a água e, à luz da noite, contemplei uma figura escura que me aguardava aos pés de um vulcão que se erguia no meio do oceano, audaz. Resfriado o sangue, desacelerado o coração, cessada a respiração, a pele azul tornou-se branca. Fiz-me gelo. Aqui, a água que me acariciava não era mais capaz de me sustentar vivo: em seu lugar, inspirei o gélido ar da noite, que trouxe novo fôlego e alento.

Nadei até a sombra à melodia de trovões que ressoavam pelo céu e de tremores que serpenteavam na terra, vapor deixando minhas guelras a cada expiração.

A figura escura estendeu-me um braço e, com clemência, fez com que as chamas vermelhas que irrompiam de sua pele não me queimassem. Pé ante pé, aproximei-me dela e ignorei a formalidade do cumprimento, lançando-me em um abraço. Das mil perguntas que dançavam em minha mente, nenhuma se fez ouvir.

E então ela falou.

– Bert? Acorde!

Abri os olhos e vi quarenta pares de olhos me observando à medida que o professor se aproximava de minha carteira.

– Gelo – disse ele. – Poderia nos explicar sobre as glaciações, Bert?

Gelo. Sentia-me atordoado com o sonho, mas de alguma forma o tema estava relacionado à aula. Era a terceira vez naquela semana que eu aprendia sobre isso. Até rabisquei uma lista do que eu já sabia: que água quente congela mais rápido que água fria; que, em 1850, uns patinadores decidiram fazer acrobacias no gelo e, assim, criaram a modalidade patinação no gelo; e que, segundo a Nasa, sorvete é um dos três itens dos quais astronautas mais sentem falta. Porém, não havia estudado a parte que interessava à aula. Fiz que não com a cabeça.

Depois de sorrir para mim sem abrir a boca por alguns segundos, meu professor começou um longo monólogo sobre propriedades do gelo. Coloquei um chiclete na boca e comecei a anotar alguns pontos no caderno, mesmo com a dificuldade de prestar atenção por ter sido acordado de súbito.

– Ouçam bem, jovens – explicava Asnésio, meu professor de Física, empurrando os pequenos óculos para trás com o dedo do meio. – Glaciações são outro nome para as eras do gelo. Estamos atualmente na sexta era glacial, que começou 2 milhões de anos atrás. Para cada cem mil anos de muito frio, teremos dez mil anos com temperatura mais amena. Agora, estamos há oito mil anos em um desses períodos menos gelados."

– Professor, isso significa que em mais ou menos dois mil anos teremos uma nova expansão das camadas de gelo?

Nem me dei ao trabalho de esticar o pescoço para ver quem estava falando. Esse tipo de comentário só podia ter vindo de uma pessoa: Jess, a mesma menina que certa vez interrompeu o professor de História para perguntar quais eram, na opinião dele, os três maiores sinais do capitalismo moderno. O professor ficou tão surpreso com a pergunta descabida que decidiu que era uma piada e prosseguiu com a aula.

Herói de Água | Herdeiros do Não Mundo 1 (amostra)Onde as histórias ganham vida. Descobre agora