Capítulo IV - DESGOSTOS DO CORAÇÃO

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— Mas mesmo agora nos encontrámos!

— exclamou o desconhecido. - Permita-me que me apresente: Henry Gowan.

O jovem possuía uma certa distinção e uma voz agradável. Contudo, se Arthur se tivesse apaixonado por Chetry - mas não tinha -, achá-lo-ia bastante antipático.

Nessa altura, apareceu Cherry: que ar radioso o seu rosto deixava transparecer! Como acariciava aquele cão, que tão bem a conhecia! Quantas coisas exprimiam o seu rubor, e a sua perturbação, os seus olhos baixos! Clennam nunca a vira assim.

Entraram os três na sala de jantar: uma nuvem ensombrou o rosto do senhor Meagles, que reprimiu um suspiro antes de cumprimentar Gowan. E Arthur deu-se conta de que a mesma inquietação se espalhava pelo rosto do seu anfitrião sempre que via a filha com o recém-chegado. Com respeito a Gowan, Arthur veio a saber que estava ligado às famílias mais ricas do país. Todavia, a sua fortuna pessoal era demasiado insignificante para que lhe fosse concedido um desses cargos lucrativos e tranqüilos das altas esferas administrativas. De forma que se fizera pintor, mas lidava com a sua arte com tanta desenvoltura, que não obtinha grande sucesso.

À tarde, começou a chover e o dia pareceu a Clennam muito tristonho. Quando voltou para o quarto, afundou-se na poltrona e ali ficou por muito tempo, sem se mexer, escutando a chuva que caía a cântaros sobre o telhado. Bateram à porta. era Daniel Doyce, que lhe vinha perguntar a que horas partia no dia seguinte. Quando a questão ficou resolvida, Clennam não se conteve e abordou um assunto que o atormentava:

— Pareceu-me hoje que o nosso anfitrião estava um pouco sombrio.

— Sim - respondeu Doyce.

— Mas a filha não, creio eu.

— Não - retorquiu Doyce.

Ambos se calaram. Doyce, de olhos fixos na chama da vela, prosseguiu lentamente:

— O facto é que o senhor Meagles por duas vezes levou a filha para o estrangeiro, com o objetivo de a afastar de Gowan. Acha que ela sente uma extrema simpatia por ele e receia que semelhante união não dê bons resultados.

— Eles estão. - Clennam engasgou-se, tossicou e calou-se.

— O senhor apanhou um resfriado - declarou Doyce, sem olhar para ele.

— Decerto estão noivos, não é verdade? - prosseguiu Clennam em tom desprendido.

— Ainda não, pelo que me foi dito. O rapaz declarou-se, mas nada ficou decidido. Tudo o que há entre eles, viu-o o senhor, com os seus próprios olhos, esta tarde!

— Ah! Vi bastante - exclamou Arthur. O senhor Doyce deu-lhe as boas- noites com uma inflexão de homem que ouviu um grito de desespero e fez menção de responder com qualquer coisa encorajadora. E a chuva caía a cântaros, fustigava o solo, pingava dos ramos dos abetos e dos troncos nus de outras árvores. Caía pesadamente, tristemente. Era uma noite de lágrimas.

A Pequena Dorrit não completara os vinte e dois anos sem conhecer um apaixonado. este era o filho, muito sentimental, de um porteiro, a quem o pai esperava, na devida altura, legar o cargo imaculado e a quem familiarizara, desde a infância, com a responsabilidade do ofício, ambicionando manter o aferrolho na família E, enquanto esperava, o jovem ajudava a mãe a manter uma pequena loja de tabaco, situada próximo da prisão.

Ainda o objeto da sua afeição se sentava na sua cadeirinha e brincava com bonecas, e já o jovem John Chivery a contemplava com êxtase. Quando cresceu o suficiente para chegar aos buracos das fechaduras, ficava horas a admirá-la, com um olho só, enquanto o jantar que deveria levar ao pai arrefecia aos seus pés. Aos vinte e três anos, sempre fiel, oferecia todos os domingos, a tremer, charutos ao pai da sua bem-amada.

A Pequena Dorrit (1857)Where stories live. Discover now