Capítulo III - O BECO DO CORAÇÃO-QUE-SANGRA

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Em qualquer dos casos, era uma desgraça comum a todos os moradores do Beco do Coração-que-Sangra.

Nesse momento, entrou um jovem de rosto um pouco ingénuo, emoldurado por suíças ruivas, o macacão pontilhado de manchas de cal: era Plornish. O visitante levantou-se, dizendo que viera para falar da família Dorrit. Plornish examinou-o então com desconfiança, respondendo por monossílabos às suas perguntas: tomava-o, obviamente, por um credor! Arthur apresentou-se finalmente.

— Ah, é o senhor Clennam? Já me falaram do senhor! Sente-se, cavalheiro, e seja bem-vindo. Veja o senhor, eu próprio também não tive sorte e fui parar à Penitenciária e foi aí que conheci Miss Dorrit.

— Conhecêmo-la intimamente! - sublinhou a senhora Plornish, muito orgulhosa desta intimidade.

— Foi o pai quem eu conheci primeiro: que homem distinto e polido! Aquilo é que são maneiras e distinção! O senhor percebe como é que um cavalheiro como ele cria bolor na Penitenciária? E talvez não saiba - disse, baixando a voz com admiração -, mas as filhas não se atrevem a dizer-lhe que trabalham! Hem? Que categoria de homem, hem?

— Sem verdadeiramente o admirar por esse facto - observou calmamente Clennam -, lamento-o muito.

A observação pareceu sugerir a Plornish, pela primeira vez, que aquela atitude talvez não fosse tão admirável como pensava.

— E como conseguiu que Miss Dorrit entrasse ao serviço de minha mãe?

— Ela deu-me uns pequenos anúncios que eu trouxe para o sítio onde trabalhava: quer dizer, para casa da senhora Clennam e também para casa do senhorio do Beco, o senhor Casby.

— O senhor Casby? Oh, mas é um velho conhecimento! - exclamou Arthur, ficando muito pensativo. - Mas voltemos ao objetivo da minha visita: gostaria que me ajudasse a obter a liberdade do Tip.

Plotnish conhecia o credor que mandara o rapaz para a prisão: era um alquilador de uma rua vizinha. Ambos se dirigiram, pois, à sua cavalariça e, após demorados e hábeis manejos, conseguiram que, mediante o pagamento de metade da dívida, a queixa fosse retirada. Tip estava livre!

— Senhor Plornish - disse Arthur, uma vez resolvido o assunto -, conto com a sua discrição. Diga simplesmente ao Tip que se encontra em liberdade. Bem vistas as coisas, pode acrescentar que foi um amigo que lha conseguiu e espera que, quanto mais não seja pelo amor que tem à irmã, faça bom uso da sua liberdade!

No regresso, Plornish tentou esboçar a Arthur um quadro da vida dos moradores do Beco. todos se encontravam na penúria, e, mais ainda, estavam enterrados nela até ao pescoço E por que, ninguém sabia dizê-lo. Havia gente rica - e alguns muito ricos - que dizia que os moradores do Beco eram imprevidentes; por exemplo, se viam algum habitante do Beco subir - uma vez por ano - para a sua carroça com a família, a fim de darem um passeio pelo parque, exclamavam e Julgava que era pobre, meu imprevidente amigo!. Santo Deus, como aquilo custava! Era, então, forçoso endoidecerem de tristeza O dia inteiro, as raparigas e as mulheres do Beco costuravam, mal ganhando o suficiente para não morrerem à fome. E mais ainda. Os velhos, que haviam trabalhado toda a vida, iam parar ao asilo, onde eram tratados pior do que se fossem nada! E quem era o responsável por tudo aquilo, ah, isso ele desconhecia E mesmo os que poderiam fazer qualquer coisa ficavam de braços cruzados; e como as coisas não se resolviam por si só, pois bem.

O nome do senhor Casby despertara no espírito de Arthur uma certa curiosidade. com efeito, o senhor Casby era o pai de Flora, a bem-amada da sua adolescência. Era um homem que gozava da reputação de ser pródigo em inquilinos à semana e de conseguir arrancar soldos de becos e ruelas dos quais nada se esperava.

Após vários dias de investigação e pesquisas, Arthur convenceu-se de que o caso do Pai da Penitenciária não tinha solução e tristemente renunciou à idéia de lhe propor voltar a liberdade. Em qualquer dos casos, decidiu fazer uma visita ao senhor Casby.

A Pequena Dorrit (1857)Onde histórias criam vida. Descubra agora