Assenti, pois ele tinha razão. Eu ainda não tinha idade para beber, de acordo com a lei, mas meu pai sempre havia sido incrivelmente liberal quanto ao consumo de bebida alcóolica. Busquei o saca-rolhas enquanto Robert Miller se encarregava de desempacotar as compras, separando os ingredientes necessários para o nosso famoso macarrão.

Éramos sozinhos há muitos anos, o suficiente para nos acostumarmos e criarmos nossas próprias tradições. O sangue Miller se dissipou mais a cada geração, alguns procuravam abandonar o sobrenome e viver como humanos, outros não suportavam o limbo no qual estavam, fadados ao sentimento de não-pertencimento para o resto de suas vidas. Meus avós se foram antes de meu nascimento e eu... bem, sou tudo o que meu pai tem.

— Como foram os estudos hoje? — Meu pai perguntou após despejar o macarrão na panela de água. — Conseguiu se concentrar?

Eu estudava em casa desde pequena, pois era o mais seguro para nossa raça. Apesar de não podermos viver no mundo mágico, também não possuíamos permissão para frequentar as escolas humanas, pela volatilidade dos poderes de um jovem. Antes de aprender a controlá-los, qualquer gatilho poderia causar uma catástrofe e expôr a magia.

Mesmo buscando todos os tipos de estímulos, eu nunca havia sentido meus poderes, sequer sabia quais eram. E, por ter o sangue Miller, acreditava que jamais seria um risco aos humanos, mas não poderia quebrar uma lei da magia. A família real era praticamente onipresente, eles saberiam.

— Não muito. — Confessei, conseguindo alcançando o vinho e colocando o saca-rolhas no topo. — Como foi o trabalho?

— Como sempre. — Ele suspirou, o que me fez estremecer. Papai trabalhava em uma fábrica há quase duas horas da nossa casa, como se o trabalho já não fosse cansativo o bastante. Era muito difícil conseguir empregos bons no mundo humano sem sequer poder frequentar o colégio quando jovem. Sem um diploma ou experiência... éramos invisíveis. — Os alemães estão dando uma grande ajuda lá dentro, e essa semana teremos novos equipamentos.

A rolha do vinho finalmente saiu, o que provocou um sorriso animado nos lábios de meu pai. O cheiro de cebola frita invadiu a casa e nós bebemos o vinho enquanto cozinhamos juntos. Logo, papai colocou um dos seus sucessos preferidos de Johnny Rivers e cantou pela cozinha ostentando um sorriso inebriante.

Por um momento, foi fácil esquecer o e-mail que definiria nossas vidas. Foi incrivelmente fácil focar em papai, no seu balançar hilário de quadril e voz desafinada, e gargalhar com ele como se não houvesse tensão entre nós.

Porém, uma hora e meia depois, dois pratos da macarronada especial dos Miller e meia taça de vinho, encaramos meu celular entre nós no balcão. Suspirei quando meu pai o pegou e abriu o aplicativo, tomando as rédeas da situação.

— Você sabe que não precisa estar tão nervosa. — Ele murmurou, mas também parecia nervoso. — O resultado não é definidor da nossa vida. Somos Miller, mais forte do que parecemos.

Eu não consegui conter o sorriso de lado que repuxou meu rosto. De fato, ele tinha razão mais uma vez. Acompanhei com o olhar enquanto meu pai selecionava o e-mail enviado pelo Colégio Blade & Blood. O brasão da instituição nos saudou. Espirais dançavam ao redor de uma camélia, a flor da família real, o que parecia hilário quando comparado ao nome do colégio.

Porém, no mundo mágico as coisas eram assim. A mais bela das flores também era a mais mortal, e quem se enganava com as aparências se tornava a vítima. Eu havia entendido isso há muitos anos, logo após entender o porquê de não conhecermos nenhum outro ser místico e o porquê de nossa família ser tão minúscula.

Havia uma luxúria incrível que envolvia a família real, suas regalias e sua beleza. O que a tornava tão mortal quanto uma planta carnívora disfarçada de camélia. Não era a toa que a realeza arcava com todos os custos dos acadêmicos do B&B, eles precisavam de súditos leais e agradecidos.

Blade & Blood. A palavra ressoou em meus ouvidos como se eu tivesse a dito em voz alta, mas a única coisa que eu podia escutar eram meus batimentos cardíacos extremamente acelerados. Meu pai rolou o dedo pela tela do celular, seus olhos ziguezagueando pela página.

— É com grande satisfação que informamos que sua inscrição para o Blade & Blood... — A voz de meu pai começou lenta e transformou-se em uma mistura de agitação e euforia, fazendo-me arregalar os olhos. — foi aceita!

Havia um zumbido na minha cabeça nessa hora. Um zumbido estranho e reconfortante. Haviam gritos, gritos de felicidade de Robert Miller, e um sorriso bobo em meus lábios porque havíamos conseguido. Eu fui abraçada com força, retirada do chão e girada no ar por um homem que só sabia sorrir alto.

Eu sabia que, a partir daquela quarta-feira, minha vida inteira mudaria.

E eu achava que estava preparada.

Bem, talvez eu realmente estivesse.

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⏰ Last updated: Jan 16 ⏰

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Flores e TrevasWhere stories live. Discover now