Guto, por sua vez, não tinha nada. As vezes tinha uma casa para morar, isso quando sua mãe não o expulsava. Agora, no entanto, era a sétima vez que morava na rua. E só tinha dezessete anos. Estava esperando a poeira baixar por alguns dias, como era de costume, para então poder voltar para casa. Sabia, no entanto, que seria chutado mais uma vez. E de novo. E de novo. Sua mãe era bipolar. Seus irmãos, mais errados que ele. E seu pai, outro sem futuro. Igual a Guto, que estava prestes a completar dezoito anos e, com isso, tinha ciência que voltar para casa como se nada tivesse acontecido ficaria mais difícil.

      Dessa última vez havia sido expulso por ter sido pego pela polícia, na festa de aniversário de Vitor, e levado para o Conselho Tutelar. A mãe teve que ir lá tirar ele. No dia seguinte, brigaram e ela jogou uma cadeira em suas costas. Ele correu e ela mandou ele não voltar mais. Ele levou consigo todos os cigarros e peixes dela.

Pelo menos havia conseguido pegar três celulares novinhos na festa. Se meter com os riquinhos da cidade não havia sido uma total perda de tempo.

Luis Gustavo, que odiava ser chamado assim porque era o nome do seu avô, era filho de Janeide com Allan e irmão de Izadora, Junior, Camila e Rony. Mas ele se considerava mais filho das ruas da Capital da Fé, e filho também das esquinas de Goiás, do que de seus próprios pais. Seus amigos eram mais seus irmãos que os de sangue também. Sua barriga roncou e a lua se tornou verde, exibindo sorriso de gato. A lombra estava começando a bater e a felicidade falsa estava invadindo seu ser. Era essa a sensação que o papel lhe causava, fora que havia fumado quase que uma pamonha de maconha. E ele aprecisava as visões psicodélicas que tinha. Era o único momento pleno e sem problemas que conseguia ter. Por essa razão, usava todo tipo de droga. E sempre que podia.

      Trindade, a Capital da Fé... Riu consigo. O que era fé para aquele povo? O que era fé para o povo de Deus? Lembrava que a última atividade que fez quando estudou no Divino Pai Eterno, no primeiro ano do ensino médio, foi sobre a fundação da cidade, que se deu a partir do encontro entre a fé e a devoção. Tudo começou quando um casal de agricultores achou um medalhão de barro enquanto cavava a terra, daí fizeram uma capela em adoração e a notícia se espalhou. A partir de então há a fé na cidade, desde a primeira metade de mil e oitocentos, quando Trindade ainda era conhecida como Barro Preto.

      Guto se levantou quando viu a água do lago começar a borbulhar como se fosse um enorme caldeirão e estive no fogo, fervendo como água para fazer café. Porém, não havia calor. Talvez o que estivesse vendo fosse uma confusão mental em decorrência dos alucinógenos. Deveria era parar de misturar maconha com LSD, estava vendo coisas bem mais realistas que o normal. Fora que havia tomado duas latinhas de Bavaria antes de rumar ao lago naquela noite.

      As bolhas diminuiram e se focaram no centro. Em seguida, começaram a andar rumo a superfície. Primeiro, viu duas cabeças; depois os troncos; no fim, os dois homens emergiram por completo da água. Um loiro, com aparencia mais jovial, e o outro mais bruto, como um gerente de academia ou segurança de boate burguesa. Ambos usavam tipos de roupas sociais pretas, sendo a do mais jovem um tanto despojada.

      Guto se levantou ao poucos, apreensivo e boquiaberto. Mas, não conseguiu correr. Quem eram? Mórmons? Pregadores? Em realidade, estava era acreditando ser alucinação da sua cabeça.

      — Não se assustou? — perguntou o loiro para Guto quando se colocou por completo na superfície. Passou as mãos pelos cabelos molhados. A roupa também estava ensopada. — Tomara que esse lago tenha a água tratada. — Olhou para trás. — Eu nunca vou me acostumar com isso de chegar todo molhado na Terra. Toda vez.

      Guto não disse nada, permanecia sem acreditar no que seus olhos viam. O papel, a maconha e o álcool haviam batido forte.

      — Qual seu nome, rapaz? — perguntou o de terno. Seus braços eram fortes e seus músculos se desenhavam mesmo dentro da roupa. Diferente do parceiro, ele não parecia estar desconfortável com o líquido escorrendo das vestes.

Herdeiros Da LuzWhere stories live. Discover now