Deja Vu

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Gumball era meu irmão. Ele ainda é, de certa maneira. Ele morreu no meio de 1993, e, como podem deduzir, se foi, para sempre. E posso afirmar, querido leitor, que para sempre é muito tempo. Entretanto, ainda é um tempo incerto, o que o torna minimamente melhor (ou pior?).

Ele era meu confidente. Contava tudo para ele, sobre meus amores, meus medos, minhas dúvidas e complicações. Ele era uma espécie de professor sentimental, me explicava exatamente sobre o que eu não entendia: emoções.

Ele me ensinava sobre o que realmente importava. Ensinava-me como viver e, quando ele se foi num acidente de carro, esqueci de como prosseguir com minha existência. Ele não estava mais lá, para me orientar, me direcionar, dizer quais caminhos seguir, o que eu deveria fazer.

Em um momento, existia. No outro, se foi completamente. E isso me assustou.

Por isso, escrevia cartas para ele. Não cartas com papel e caneta, mas cartas mentais que direcionava ao nada e ao tudo, com um selo de amor.

Sempre que queria conversar com ele, mandava meus relatos secretos ao céu noturno: para mim, Gumball era uma estrela, com um brilho comparável ao da estrela Sirius. Eu sabia que ele brilhava lá, em algum lugar do infinito e, mesmo sabendo que isso era cientificamente impossível, eu podia jurar que as estrelas eram formadas da mesma poeira cósmica de sua existência: realmente, existem mistérios da vida que apenas intuições podem esclarecer.

E, naquela noite, depois que Marceline me ensinou a nadar, escrevi para ele:

"Gumball,
tenho uma amiga
deve estar orgulhoso
me sinto bem com ela
ainda assim
não consigo te dizer
adeus"

Foram simples palavras, palavras que saiam em formas de pensamentos durante uma madrugada qualquer de um verão qualquer, que viravam lágrimas que escorriam sem minha permissão, e que eram carinhosamente lambidas por Mentinha. Pensamentos são uma morte dolorosa, e assim morremos aos poucos durante nossa vida, até que chega o preço final e paramos debaixo da terra, decompondo, desfinhando, mortos.

Eu chorei naquela noite, de novo.

Precisava nadar.

                         》》》《《《

Ainda me lembro de todos os detalhes. Mesmo lugar. O sol brilhava. O vento dançava. O meu tórax subia, apenas para descer. Meus pés balançavam. Nirvana.

E então, como uma réplica do dia anterior, numa falha da Matrix (vulgo déja-vu)...ela apareceu como havia prometido. Ao menos essa promessa Marceline cumpriu.

     — Eai — podia sorrir com a visão prévia de seu rosto. Entretando, ao abrir os olhos e me surpreendi: hematomas, por toda extensão abaixo do olho esquerdo.

Me assustei, a mera possibilidade de alguém tê-la machucado repentinamente ferveu meu sangue e me perguntei desde quando me importava com pessoas que acabava de conhecer. Franzi o cenho, questionando o meu interior e meu exterior ao mesmo tempo.

     — O seu rosto... — murmurei.

     — É uma beleza, eu sei — disse, numa clara tentativa de desviar do assunto, ainda que seu tom fosse verdadeiro, algo que me fez lhe designar mais uma característica: autoconfiança.

     — Isso eu não posso negar — as palavras saíram de minha boca e meu Deus, o olhar convencido que Marceline me direcionou me fez perceber que aquilo pareceu uma...cantada? Eu me perdi nas minhas próprias palavras, para me reencontrar alguns milésimos desleixados depois — Quer dizer, estragaram um pouco ele

     — Eu sei, pedi educadamente para o desgraçado não mirar na cara — seu tom era brincalhão, como se quisesse deixar tudo aquilo de lado ou torná-lo menos relevante, entretanto, eu não conseguia ignorar. Não podia ignorar. Porque, ainda que negasse, eu ligava para seu bem-estar, e esse é um dos primeiros sinais da linguagem do amor.

     — O que aconteceu?

Meu tom preocupado pareceu intrigar minha amiga. Ela franziu as sobrancelhas e deu um sorriso minúsculo, percebeu que eu me importava, e isso pareceu lhe agradar.

     — Shows de rock são assim, sabe? — passou a mão pelo cabelo, que logo voltou à exata posição que se encontrava anteriormente, deslizando. Eu me atentava a todos os seus detalhes, como se pudesse decorá-los (e talvez realmente tenha decorado), porque queria decifrá-los, porque queria entender Marceline — As pessoas brigam sem motivo. Pelo menos eu ganhei.

      — Legal. Só não se defenda com a cara na próxima vez — Marceline riu e, como uma inevitável consequência, eu ri também.

       — Cala a boca, Bonnibel, eu tenho uma ótima esquiva — ela fez gestos que me lembravam os de um lutador de boxe num ringue.

      — É, posso ver — apontei ironicamente para o seu olho arroxeado e sorri, Marceline revirou os olhos, mas pude ver uma mínima curvatura de seus lábios para cima, o que indicava que minha presença não era tão ruim assim.

Como resposta de minha brincadeira, ela pulou repentinamente na água, fazendo as gotas espirrarem diretamente em mim. Não pude deixar de sorrir com sua infantilidade, e ela riu de minha maturidade. Ironicamente, naquele cenário, ela quem me ensinava as coisas. Estendeu a mão para mim, me convidando para mais uma aula de natação. Sem possibilidades de recusa, entrelacei meus dedos nos seus e ela me puxou para dentro da piscina.

Sabe, as coisas com Marceline eram assim: não faziam sentido de uma maneira que fazia sentido, se isso sequer faz algum sentido. 

                        》》》《《《

Eu aprendia a boiar. Marceline me explicava tudo, me mostrava como transformar seu corpo numa rolha de vinho, e permanecer sobre a superfície. Simples passos: prenda a respiração, sinta o corpo emergir e solte o ar aos poucos.

Era lento, calmo e relaxante. Marceline me ensinava coisas boas. Me ensinava não só como nadar, mas como conhecer, como aproveitar, e percebi como os pequenos detalhes da vida a formam como inteira.

E ficamos lá, a tarde toda, até o momento em que o sol começou a se pôr no horizonte e pincelar seus tons alaranjados na imensidão azul do céu, mas, sinceramente, em momentos como aquele o tempo não importava, o tempo era apenas um detalhe, um complemento, pois, independentemente do tempo, sinto que poderia ficar lá apenas boiando com Marceline para sempre.

Ainda que houvesse uma certa irrelevância em relação ao tempo, existia sim um momento de acabar. E foi quando nos despedimos mais uma vez, mas não seria a última.

     — Nadou bem — apoiou os braços no guidão de sua bicicleta, pronta para partir.

      — Eu aprendo rápido — ela sorriu, exibindo seus caninos afiados — Até mais, Marceline — virei as costas, mesmo sendo vizinhas, Marceline sempre parecia ter outros planos para o fim do dia e nunca parava em casa, por isso tínhamos destinos opostos — Ah, e da próxima vez que se meter em uma briga, não leve uma surra! — gritei conforme me afastava.

     — Eu faço de tudo para ganhar, Bubblugum — subiu na bicicleta e se foi. E eu fiquei rindo metade do caminho de volta.

Gostava de Marceline. Gostava mesmo de Marceline.


                          》》》《《《

sorry, eu esqueço de passar os capítulos para

Verão de 1994 - BubblineΌπου ζουν οι ιστορίες. Ανακάλυψε τώρα