‧₊˚ prólogo.

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Henrique.

Salvador, Bahia.

Fevereiro de 2016.

Meu corpo despertou progressivamente; aos poucos, meus sentidos se tornavam mais evidentes. Primeiro, minha audição. Reconheci o ruído baixo do ar condicionado, uma respiração serena ecoando próxima e o leve movimento das ruas, muito abaixo daquele andar. Em seguida, meu tato. Senti o toque macio dos lençóis, minha pele nua em contato com as cobertas. Por último, minha visão: o ambiente ainda se encontrava escuro o suficiente para que eu conseguisse distinguir muito, mas a silhueta ao meu lado na cama era distinta o suficiente.

Eu me equilibrei sobre os meus cotovelos e bocejei enquanto relutava contra a vontade de fechar os olhos e voltar a dormir. Com meus sentidos mais aguçados, meus olhos percorreram o quarto, encontrando vestígios da noite anterior: peças de roupa pelo caminho, uma embalagem de preservativo ao lado da cama e até uma garrafa de cerveja vazia sobre a mesa de cabeceira.

Por fim, as memórias da noite anterior me atingiram. O álcool ingerido, as mensagens de Gabrieli, a frustração que as suas palavras me causaram e a forma extremamente imprudente como eu agi em seguida. Então, me ocorreu: a dona da silhueta deitada ao meu lado na cama não era Gabrieli — minha esposa.

Minha primeira reação foi descer da cama, sem questão alguma de ter cautela, mas seja lá quem for que ocupava o outro travesseiro, parecia estar imersa em um sono tão profundo para que sequer percebesse minha ausência.

Meu coração estava disparado, mas eu não conseguia me concentrar em algo concreto. Quando eu pensava sobre a noite anterior, eu não conseguia dizer em que momento minhas frustrações sobre o meu relacionamento se excederam àquele ponto. Gabrieli e eu vivíamos em uma inconstância profunda, mas ali eu havia acabado de exceder os meus próprios limites.

Antes de seguir ao banheiro, percebi a tela do meu celular acendendo. Com cautela, retirei o aparelho do carregador, aflito com a quantidade de mensagens sobre a tela. Caminhei a passos lentos, recolhendo parte das peças antes de me trancar no banheiro, receoso com a possibilidade dela acordar.

Apenas então, desbloqueei a tela. Havia centenas de ligações e chamadas. Meu irmão, meu assessor, meus pais e... Gabrieli.

Seria besteira tentar me convencer do contrário. Eles sabiam. Não haveria razão aparente para tanta histeria se não fosse por aquilo.

Me sentei no chão, logo atrás da porta. Com o celular em mãos, percebi que não havia como evitar. Ignorar aquelas mensagens só faria com que eu parecesse ainda mais covarde. Se minha versão embriagada na noite anterior havia tomado atitudes equivocadas, então talvez fosse culpa da minha versão sóbria que deixou que aqueles pensamentos me ocorressem.

Com ânsia, fosse resultado do nervosismo ou a ressalva das minhas atitudes da noite anterior, cliquei sobre o nome "amor" na tela. Meu coração disparou ao ver a quantidade de extensas mensagens deixadas por ela.

"Eu não vou nem tentar te ligar porque eu sei que a essa hora você provavelmente não deve estar acordado. Por favor, não tenta me ligar também, tira um tempo depois que você ler isso para colocar a cabeça no lugar. Nós dois precisamos", dizia a primeira mensagem.

"Eu obviamente sei o que aconteceu na noite passada. Talvez não era a sua intenção que eu soubesse, ou sei lá, porque seus amigos não foram discretos ao postar aqueles vídeos, mas a essa altura, não faz diferença", a mensagem seguinte deixava evidente que ela estava forçando indiferença para tentar camuflar o que sentia. Eu não tinha direito de exigir nada, eu sabia. Mas eu honestamente preferia que ela me xingasse e me ofendesse a fingir indiferença.

"O que eu estou sentindo agora é uma coisa que eu não consigo descrever. Não é ódio, não é raiva, é algo muito mais emocional e profundo do que isso. Mais profundo do que a decepção".

Ali estava, de novo. Aquela não era a Gabrieli que eu conhecia. Talvez aquela fosse sua tentativa de sair daquela situação de cabeça erguida, com o orgulho intacto. E por mais que eu quisesse que ela me ofendesse, que me xingasse de tudo aquilo que viesse a sua mente, com esperança de que aquilo me reconfortasse, eu não poderia culpá-la.

"Eu acreditei em você, Henrique. Eu sempre acreditei em você".

"Você sabe quantos anos eu passei ouvindo de todo mundo que você não seria fiel? Que eu era burra por acreditar que você não me traía? Afinal, um homem como você poderia ter qualquer uma e eu... não sou nada além de uma carinha meiga. E eu sempre respondi com a cabeça erguida que você jamais faria isso comigo. Mas então, você fez a única coisa no mundo que eu pensei que você jamais faria, não de novo".

Tudo me atingiu com mais força a partir daquele ponto e os questionamentos começaram a me ocorrer; eu havia deixado me levar pelo que? A troco de quê, principalmente? Cinco anos de relacionamento que pareciam jogados no lixo. E a culpa não cabia a ninguém além de mim mesmo.

"Eu nunca suspeitei de você, nunca duvidei por um único instante que você jamais faria isso comigo. Não é porque eu sou boazinha demais, mas porque você sempre me deu motivos para confiar em você".

"Nós estávamos bem. Depois de tanto tempo, tanta coisa que aconteceu entre a gente e eu realmente achei que dessa vez fosse para valer. Eu só queria um futuro do seu lado. Era a única coisa que eu já te pedi. E você acabou com isso de repente".

Eu assenti. Ciente de que ela não poderia ver, sozinho dentro de um banheiro há quilômetros e mais quilômetros de casa. Eu só queria que ela soubesse. Eu sabia o que tinha feito. Eu sabia a dimensão dos meus atos. Mas eu não sabia se estava pronto para lidar com as consequências.

"Eu passei a noite inteira em claro, tentando me conformar com tudo isso, sem saber como digerir. E eu ainda não sei como levar isso daqui para a frente".

"Eu não sei o que você pretende fazer. Se você quiser que eu saia de casa, pede para a Mohana ou o Juliano falarem comigo, mas eu não quero te ver por enquanto. Se você precisar pegar alguma coisa, na segunda eu vou estar no trabalho até as 18:00. Fora isso, eu não tenho muito para te dizer".

"Por favor, respeite o meu tempo".

Em um gesto não de raiva, mas de total frustração, joguei o aparelho contra a parede, apenas ouvindo o barulho do impacto. Então, eu voltei a me sentar, chorando desolado, envolvido pelos meus próprios soluços, me perguntando como havia chegado até ali.

(Im)perfeitos | Ricelly HenriqueOnde as histórias ganham vida. Descobre agora