* * *
- Ué? Esqueceu o casaco? – brincou a recepcionista ao ver João retornando, que respondeu com um sorriso e uma meneada de “pois é” com a cabeça enquanto mentalmente a mandava tomar no cu.
Do saguão cambaleou ao elevador e saiu um andar acima da redação, onde fica a diretoria. Ou ficaria se não estivessem todos emendando o feriadão em Ilha Bela. Porém, mais importante no momento, era ali também que ficava a máquina boa de café. Virou a primeira dose quente de cafeína molestando as papilas gustativas, mas funcionou para ajudá-lo a acordar. Pegou a segunda dose e aí sim foi até a redação.
Assim que saiu da escadaria, sentiu os olhares ariscos dos redatores o perfurando como fariam com um carrasco. Sabia que eles o chamavam de “O Capataz” pelas costas e ficaria bravo com o apelido se não enxergasse nele um fundo de verdade. Os redatores sabiam que a sua volta era garantia de correria e hora extra. Não remunerada, obviamente.
- Quanto está o placar? – João lançou a pergunta ao ar sem destinatário certo.
- Nove mortos – respondeu Paula após alguns segundos de silêncio desconcertante. Era uma das redatoras mais novas do caderno mundo. Recém-formada, mas menos burra do que o normal.
- E tem brasileiro?
- Até agora não.
- Merda – reclamou João – Eu não acredito que eu voltei até aqui por causa de nove argentinos.
Toda vida é inestimável, mas, ao menos para o jornalismo, toda morte tem um valor. E nove argentinos não é um prato muito apetitoso. João estava mal acostumado, afinal o último abalo na China havia acumulado alguns milhares de mortos. Deus abençoe a China e a sua capacidade de gerar números bombásticos para as primeiras páginas.
- Mas com certeza vai aumentar – falou Marco. Era também da editoria mundo, mas, com alguns anos de ofício nas costas, já estava mais confortável do que Paula com o seu papel de urubu de estatísticas de mortalidade.
- Tomara – disse João, já clicando no site da agência internacional.
- O epicentro foi perto da fronteira com o Chile – prosseguiu Marco – A região é afastada, o que dificulta buscas e atrasa a contagem oficial. E pobre, garantia de falta de preparo pra uma tragédia.
- Deus te ouça – suspirou João – E deu pra sentir daqui o tremor? Alguém falou com aquele pessoal da Paulista que sentiu balançar daquela vez do Chile pra pegar umas aspas deles?
- Eu liguei pra eles – respondeu Paula – Ninguém sentiu nada.
- Então achem alguém que sentiu, caramba! Que porra de terremoto sem sal é esse? E liguem pra aquele geólogo da USP, o professor… professor… como era o nome do desgraçado?
- Professor Arruda – disse Marco, já sacando a agenda – Mas sismologia não é a especialidade dele.
- Então não menciona a especialidade dele. Ele tem a prosa solta, a gente tem o contato direto dele então é o especialista. Eu que não vou mais gastar minha paciência com aquela assessoria da USP. Marco, liga pra ele, pega alguma declaração e vê nas agências se tem algum infográfico do terremoto, senão manda a arte fazer. Paula, a gente vai montar um especial de terremotos. Sem cara de choro. Levanta os melhores momentos dos últimos pra juntar com a apuração do Marco e não me sai do cangote da embaixada brasileira porque não é possível que não tenha nenhum brasileirinho pelo menos ferido. E todo mundo, ei vocês aí atrás também, todo mundo ligue pra tudo quanto é tia, primo, ex-namorado e amigo do colégio que possa estar no local do tremor ou saber de alguém que esteja que eu quero uma galeria de depoimentos. Já vou avisando que a gente não fecha antes da meia-noite.
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Quando os Pesadelos Acordarem
HorrorO terremoto foi apenas o princípio de algo muito maior. Na primeira noite, os animais alertaram. As aves voaram para longe, os cães latiram enlouquecidos, os ratos fugiram da metrópole aos milhões. Mas nós os ignoramos. Na segunda noite, os notic...
Capítulo 1: Malditas placas tectônicas
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