Capítulo 1: Malditas placas tectônicas

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- Ué? Esqueceu o casaco? – brincou a recepcionista ao ver João retornando, que respondeu com um sorriso e uma meneada de “pois é” com a cabeça enquanto mentalmente a mandava tomar no cu.

Do saguão cambaleou ao elevador e saiu um andar acima da redação, onde fica a diretoria. Ou ficaria se não estivessem todos emendando o feriadão em Ilha Bela. Porém, mais importante no momento, era ali também que ficava a máquina boa de café. Virou a primeira dose quente de cafeína molestando as papilas gustativas, mas funcionou para ajudá-lo a acordar. Pegou a segunda dose e aí sim foi até a redação.

Assim que saiu da escadaria, sentiu os olhares ariscos dos redatores o perfurando como fariam com um carrasco. Sabia que eles o chamavam de “O Capataz” pelas costas e ficaria bravo com o apelido se não enxergasse nele um fundo de verdade. Os redatores sabiam que a sua volta era garantia de correria e hora extra. Não remunerada, obviamente.

- Quanto está o placar? – João lançou a pergunta ao ar sem destinatário certo.

- Nove mortos – respondeu Paula após alguns segundos de silêncio desconcertante. Era uma das redatoras mais novas do caderno mundo. Recém-formada, mas menos burra do que o normal.

- E tem brasileiro?

- Até agora não.

- Merda – reclamou João – Eu não acredito que eu voltei até aqui por causa de nove argentinos.

Toda vida é inestimável, mas, ao menos para o jornalismo, toda morte tem um valor. E nove argentinos não é um prato muito apetitoso. João estava mal acostumado, afinal o último abalo na China havia acumulado alguns milhares de mortos. Deus abençoe a China e a sua capacidade de gerar números bombásticos para as primeiras páginas.

- Mas com certeza vai aumentar – falou Marco. Era também da editoria mundo, mas, com alguns anos de ofício nas costas, já estava mais confortável do que Paula com o seu papel de urubu de estatísticas de mortalidade.

- Tomara – disse João, já clicando no site da agência internacional.

- O epicentro foi perto da fronteira com o Chile – prosseguiu Marco – A região é afastada, o que dificulta buscas e atrasa a contagem oficial. E pobre, garantia de falta de preparo pra uma tragédia.

- Deus te ouça – suspirou João – E deu pra sentir daqui o tremor? Alguém falou com aquele pessoal da Paulista que sentiu balançar daquela vez do Chile pra pegar umas aspas deles?

- Eu liguei pra eles – respondeu Paula – Ninguém sentiu nada.

- Então achem alguém que sentiu, caramba! Que porra de terremoto sem sal é esse? E liguem pra aquele geólogo da USP, o professor… professor… como era o nome do desgraçado?

- Professor Arruda – disse Marco, já sacando a agenda – Mas sismologia não é a especialidade dele.

- Então não menciona a especialidade dele. Ele tem a prosa solta, a gente tem o contato direto dele então é o especialista. Eu que não vou mais gastar minha paciência com aquela assessoria da USP. Marco, liga pra ele, pega alguma declaração e vê nas agências se tem algum infográfico do terremoto, senão manda a arte fazer. Paula, a gente vai montar um especial de terremotos. Sem cara de choro. Levanta os melhores momentos dos últimos pra juntar com a apuração do Marco e não me sai do cangote da embaixada brasileira porque não é possível que não tenha nenhum brasileirinho pelo menos ferido. E todo mundo, ei vocês aí atrás também, todo mundo ligue pra tudo quanto é tia, primo, ex-namorado e amigo do colégio que possa estar no local do tremor ou saber de alguém que esteja que eu quero uma galeria de depoimentos. Já vou avisando que a gente não fecha antes da meia-noite.

Quando os Pesadelos AcordaremWhere stories live. Discover now