Capítulo 1: Malditas placas tectônicas

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os filhos de Ljus não costumam falar conosco

mas suas crianças às vezes nos dirigem a palavra

.

lembro de um menino que observava em seu quarto

e ele percebeu a minha presença no escuro

e ele me perguntou se eu era um pesadelo

.

sorri e respondi que não

e expliquei que de um pesadelo

ele teria para onde acordar

Quando as pessoas descobriam que João era editor da Gazeta de São Paulo, ele encontrava dois tipos de reação. Se o fulano era jornalista, ouvia pedidos de emprego com diferentes níveis de cara de pau e costumava fingir um pouco de interesse e pedir que lhe enviasse o currículo para um e-mail velho que não checava há anos. Se o sortudo não era do meio, a pessoa tendia a perguntar como era trabalhar em um dos maiores jornais do Brasil.

E João tinha uma série de histórias decoradas sobre furos de reportagem que vieram por puro acaso, ou quando se esgueirou em um funeral em busca de uma declaração da viúva do deputado defunto, ou a invasão com câmera escondida no hotel do popstar recluso para conseguir uma exclusiva, entre muitas outras. Anedotas que embelezava só um pouco e que papagaiava palavra por palavra nessas ocasiões sociais, ou para impressionar estudantes de olhinhos deslumbrados nas palestras em faculdades de jornalismo.

Se já havia bebido um tanto, aí a resposta de João era diferente. O seu cinismo levava a melhor e ele dizia algo do tipo: “Jornalismo é que nem uma fábrica de salsicha. Depois que você visita quer virar vegetariano”. Isso costumava encerrar a discussão com uma risada sem graça ou olhar assustado.

Mas se você insistisse e perguntasse ainda o que ele mais odeia no jornalismo, a resposta saltaria de sua boca antes mesmo de você terminar a frase: “as malditas placas tectônicas”.

Jornalista há vinte anos, João aprendeu a odiar muitas coisas com a profissão. Subcelebridades que contra todas as regras do bom-senso fazem sucesso estrondoso e a chefia insiste em atirar com foto estourada logo na primeira página eram uma. Enxugadas consecutivas ao longo dos anos na redação que faziam com que cada jornalista acumulasse as funções de dois ou três eram outra. E os plantões de carnaval, e a inexistência de férias, os horários flexíveis no mal sentido e as mortes repentinas de figurões que não tinham a biografia já pronta no arquivo da Gazeta.

Mas nada disso se comparava às placas tectônicas, essas danadas.

Quedas de avião também enchiam o saco, é verdade, assim como terroristas que mostravam total desrespeito com os feriados prolongados para arquitetar seus atentados. Mas desde o terremoto de Irpinia em 1980, quando, ainda estagiário, teve que dar a primeira pernoitada na redação, os tremores o tiravam do sério. Depois disso, João tinha a mesma apreensão quando escutava a palavra “terremoto” que um veterano de guerra teria ao ouvir um escapamento estourando na rua.

Os terremotos, João concluiu, eram uma piadinha secreta de Deus, na qual o Todo Poderoso julgava valer a pena desencarnar alguns milhares de pessoas só para sacanear jornalistas por todo o globo.

E essas placas tectônicas fanfarronas, que já arrancaram dois fins de semana de João só naquele ano (Honduras e Turquia), resolveram aprontar de novo das suas e dar uma abalada na Argentina. Assim que ouviu a notícia no rádio, João começou a dar a meia-volta com o carro antes mesmo do celular tocar com o editor-chefe aos berros do outro lado da linha.

Quando os Pesadelos AcordaremWhere stories live. Discover now