Capítulo 12 - A Partida

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— Você está bem? — Chelon quebrou a tensão. Ele passou o dedo delicadamente no meu lábio para estancar o sangramento — Desculpe, não quis te assustar, mas precisamos nos arrumar para sair. Nosso contrato com o senhorio acabou e não podemos nos demorar neste lugar.

Eu balancei a cabeça em sinal positivo e desviei o olhar o mais depressa que pude. Chelon se levantou e foi para outro canto arrumar as coisas. Meu instinto foi ignorar o que aconteceu e me preocupar em juntar meus pertences. Não havia muita coisa, o porrete velho e a machadinha e meu pacote de mintias. Passei a ponta da língua no local que meu lábio sangrou e senti uma pontada. Bramba e Hiz ainda dormiam. Ajeitei meu pacotinho de mintias na bolsinha lateral, encaixei a machadinha e o porrete no cinto e fui até a saída.

Chelon fez sinal para que eu o acompanhasse para fora. A porta do celeiro já estava destrancada, mas não havia sinal do anão. Um ar gelado ocupava aquele início de manhã, e meus olhos viam os tons azul claro se misturando ao lilás no céu. Atravessamos o pátio vazio do centro da propriedade e caminhamos até a entrada principal onde a pequena estradinha de ladrilhos nos ofuscava refletindo a luz matinal. Caminhamos até a grade que separava os limites da mansão, de lá pude ver que a extensão do terreno era muito maior do que imaginava, me espantei ao ver o primeiro portão por onde passamos tão distante. Olhando para a o horizonte, via as pontas de pequenos chapéus de palha passeando entre as folhas dos pomares, um pouco de fumaça começava a escapar pelas chaminés das casinhas cujos telhados eram banhados pela luminosidade. Chelon ficou ao meu lado em silêncio por um instante.

— Podemos vender a arma que o ladino deixou para trás. Eu dei uma examinada rápida, é uma peça de boa qualidade. Você poderá ficar com o pagamento por essa espada. — ele falou.

— Mas... e Bramba?

— O mérito por ter derrotado aquele oponente é seu. A espada pertencia a ele, agora é sua.

— Hiz ajudou...

— Ele interceptou um ataque. Mas quem derrotou o oponente foi você, aceite sua recompensa.

Senti meus lábios se contorcerem num sorriso que parecia desobedecer os comandos de minha mente. Senti orgulho, felicidade, satisfação tudo junto e meu coração falou mais forte. Era bom receber reconhecimento.

O momento durou pouco. Hiz se juntava a nós. Ele chegou aflito e pareceu feliz ao nos ver — Por que não me chamaram?Achei que tivessem me deixado! — disse.

— Sabe que não faríamos isso. Você precisava de um descanso. — Chelon falou e seguiu em direção ao portão. Hiz acompanhou, soltando um bocejo preguiçoso e resmungando.

— Você eu sei que não... — ele sibilou. Foi uma tentativa falha de ofensa direcionada a mim. Se eu pudesse, me livraria dele, mas por enquanto eu não era o suficiente, não poderia proteger Chelon sozinha. Hiz era imprescindível, eu sabia disso e não tinha intenção alguma de deixá-lo para trás.

— Esperem por favor! — Escutamos Lorena gritar atrás de nós. Ela vinha correndo, carregando três pacotes empilhados que balançavam perigosamente. Pareciam embrulhos retangulares, envolvidos em papel craft. Ao passar por mim, um pacote escorregou e estatelou no chão. Imediatamente me curvei para pegar o pacote. — Já que pegou, pode ficar com esse mesmo. São mantimentos para a viagem, cortesia do Lorde Ishta. — A criada falou com desdém e sequer olhou para mim, eu só lamentei o mal entendido.

Eu levantei e sacudi o pacote, tentando me certificar de que nada havia quebrado. Escutei o barulho de um líquido sendo chacoalhado e alguns ruídos de migalhas, parecia um pacote de biscoitos. O embrulho era grande demais para colocar dentro da bolsinha então tive de encaixá-lo debaixo do braço.

Lorena retirou do bolso um selo igual ao que Chelon havia usado e desativou a barreira mágica temporariamente para que pudéssemos atravessar. A criada fez uma reverência assim que cruzamos o limite da mansão e vimos ela desaparecer no momento que a barreira foi reativada. Do lado de fora, o guarda que nos acompanhou no dia anterior nos aguardava para uma segunda escolta. O breve balançar de seu rabo indicava algum sentimento positivo ao nos ver, ele nos cumprimentou com um uivo melodioso. Foi difícil controlar meu fascínio durante a caminhada, meu desejo era manter um diálogo e observar meticulosamente como ele pronunciava as palavras mas conversa de elevador não era meu forte e optei por me manter calada.

Passamos pelo portão principal, nos despedimos dos guardas e seguimos pela estrada na direção oposta à floresta. O local tinha a aparência de civilizado mas era predominantemente deserto. Caminhamos por algumas horas pela estrada sem passar por mais indícios de civilização, não havia casas ou carroceiros, somente a estrada de terra batida, rodeada por campos de arbustos e uma mata.

A paisagem monótona nos acompanhou até alcançarmos uma estrada mais larga e preenchida por objetos similares a tijolos. Era uma via mais trabalhada pois havia um acostamento e próximo de onde estávamos uma área específica me chamou a atenção. Nesse local o acostamento se alargava dando um espaço maior onde havia um banco de madeira debaixo de um pequeno quiosque. Chelon e Hiz imediatamente foram para lá se acomodarem no banco e eu os segui. Aproveitei o momento de descanso para abrir o pacote que ganhamos. Dentro havia um cantil de couro preenchido por uma bebida, itens que pareciam frutas secas e dois itens desconhecidos embrulhados em uma folha.

— Que senhorio generoso! Tenho certeza de que não é um duende! — Hiz exclamou sarcástico.

— Ele deve ter ficado satisfeito com nosso trabalho. Além de trazermos os itens da múnus, capturamos o Naasku que estava lhe causando problemas.

Eu permaneci em silêncio, o fato de existirem duendes neste mundo já não me espantava mais, já havia visto de tudo. Me ocupei em examinar os mantimentos que havíamos recebido, o líquido deveria ser água ou algo hidratante, as frutas secas seriam como tâmaras? E o que teria naquele pacote misterioso? Abri o cantil e cheirei o líquido, inodoro. Certamente era água, só deve ter outro nome aqui. Tomei um gole. Insípido. Definitivamente era água, mas deixava uma sensação refrescante igual hortelã.

— Guarde um pouco do líquido — Chelon disse.

— Nós vamos cruzar um deserto e essa bebida será essencial. — Hiz completou.

Eu concordei e guardei o cantil no pacote. Chelon ofereceu para carregar meu pacote na bolsa dele e partimos.

A TerceiraWhere stories live. Discover now