Capítulo 2

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Barrett McCiain sentou‐se à mesa, no pátio sul da Tierra dei Sol. De imediato,  uma criada mexicana aproximou‐se para servi‐lo.  — Só quero uma xícara de café, Dolores. E enquanto a Srta. Emily não vier,  pode esperar lá dentro.  —  Si.  —  Com  um  sorriso  no  rosto  moreno,  Dolores  fez  uma  reverência  e  desapareceu no interior da casa da fazenda.  O  sol  acabava  de  surgir  no  horizonte.  Todas  as  manhãs,  Barrett  McCiain  levantava‐se  antes  do  amanhecer.  Fazia  isto  desde  a  infância  e  continuaria  a  fazer  enquanto vivesse.     Os  longos  anos  de  trabalho  duro,  levantando‐se  cedo  e  dormindo  cedo,  tinham se transformado no padrão de sua vida. Atualmente rico e poderoso, Barrett  não  tinha  mais  necessidade  de  trabalhar  tanto  quanto  antes,  e  mesmo  assim  continuava a administrar, com mão de ferro, a enorme fazenda no sudoeste do Texas.  Com quinhentos mil acres de terra, quarenta mil cabeças de gado de raça, setecentos  cavalos,  cem  vaqueiros,  quinze  empregados  domésticos  e  uma  casa  espaçosa,  sua  propriedade  era  uma  das  maiores  do  Texas,  constituindo‐se  num  verdadeiro  império.  Barrett  McCiain  gostava  de  sentar‐se  no  pátio  sul,  em  meio  ao  silêncio  da  manhã,  e  correr  os  olhos  pela  vasta  extensão  de  ferra,  que  era  sua.  Sob  o  bigode  branco  e  bem  aparado,  seus  lábios  finos  sempre  se  curvavam  num  sorriso.  Tudoaquilo  era  seu.  Tudo.  Desde  as  terras  que  se  estendiam  para  muito  além  do  horizonte,  até  o  mais  gordo  bezerro,  o  mais  forte  vaqueiro,  a  mais  bela  peça  de  mobília e o mais delicado copo de cristal. Tudo e todos pertenciam a ele. E logo outra  belíssima possessão se juntaria ao que já tinha.  Barrett McCiain tomou um gole de café e olhou em torno, assegurando‐se de  que estava sozinho. Sorrindo, colocou a xícara sobre a mesa e enfiou a mão no bolso  do casaco, retirando uma pequena fotografia. Quase com ternura, ele a colocou sobre  a toalha de linho branco, contemplando a moça sorridente ali retratada. Nunca vira  um  rosto  tão  lindo.  Nem  os  cabelos  presos  na  nuca,  num  coque  apertado,  conseguiam  diminuir‐lhe  a  beleza.  Na  verdade,  o  penteado  severo  até  servia  para  realçar‐lhe os traços delicados, mostrando a perfeição dos olhos grandes e brilhantes,  do nariz pequeno e arrebitado, do queixo oval, dos lábios cheios e do pescoço longo e  gracioso. Ela estava sentada, com as mãos no colo e a saia cobrindo os pés que, com  certeza, eram pequenos e bem‐feitos. Os ombros também eram esbeltos, formando  um quadro delicioso com a cintura fina e os seios arredondados.  Sorrindo  tolamente,  Barrett  McClain  passou  o  indicador  pela  foto,  murmurando num tom apaixonado:  —  Ah, minha menina! Será que você tem idéia do quanto é bonita? Mal posso  esperar  para  provar  seu  corpo  delicioso.  Deve  ter  sido  por  vontade  de  Deus  que  mantive minha amizade com seu pai, durante todos esses anos. Agora, quando ele  tanto precisa, posso estender a mão a vocês dois. — Barrett riu baixinho, antes de  acrescentar:  —  E  como  vou  estender  a  mão  para  você,  minha  pequena!  Se  bem  conheço. Jeremiah Webster, ele a educou da forma certa. Você deve ser tão pura e  inocente quanto um bebê. Mas não tenha medo, minha linda, estou mais que ansioso  para transformá‐la numa mulher.  A idéia lhe era tão agradável, que o fez sentir uma pontinha de culpa. Mas isso  logo desapareceu, e ele disse para o ar, com certa irritação:  — Não haverá pecado nisso. Estaremos casados, e será meu dever mantê‐la  satisfeita, para que ela não se sinta tentada a fazer algo que possa comprometer sua  alma imortal!  Com  os  olhos  brilhando  de  alegria,  Barrett  meneou  a  cabeça  branca  várias  vezes. Como sempre, conseguiu se convencer de que o que pretendia fazer era certo e  santificado. E se, por acaso, o que era certo e santificado ainda lhe trouxesse prazeres  terrenos, melhor.  — Bom dia, Barrett.  A voz suave da cunhada trouxe‐o de volta à realidade. Agarrando a fotografia  com ar de culpa, Barrett enfiou‐a no bolso e se levantou.  — Bom dia, Emily.  Ele sorriu cortesmente e puxou a cadeira para que ela se sentasse, voltandoentão à sua.  — Havia alguém aqui com você, Barrett? Tive a impressão de ouvir vozes —  Emily York comentou, tocando a campainha de prata para chamar os criados.  —  Não. Dolores é que estava aqui, um minuto atrás.  —  Deve ter sido isso, então. Ah, aí está ela! Bom dia, Dolores. Esta manhã,  vou preferir um prato de leite e cereais.  Colocando sobre a mesa as frutas que trazia artisticamente arrumadas numa  fruteira de cristal, Dolores inclinou‐se para servir café à patroa.  — Quer acrescentar mel e passas?  — Não, só creme e uma colher de açúcar.  Quando a mexicana desapareceu no interior da casa, Emily voltou‐se para o  cunhado.  —  Recebeu mais alguma notícia da chegada dos Webster, Barrett?  Barrett  McClain  dissera  à  irmã  da  falecida  esposa  que  um  amigo  em  dificuldades  lhe  pedira  ajuda.  Ao  longo  do  tempo,  ele  falara  com  freqüência  de  Jeremiah Webster, embora não o visse há mais de vinte anos, desde 1865, o fim da  Guerra de Secessão dos Estados Unidos.  Fora durante aqueles tempos sangrentos de tragédia que os dois homens se  conheceram  e  fizeram  amizade.  Barrett,  dez  anos  mais  velho  que  Jeremiah,  havia  sido  o  oficial‐comandante  do  amigo,  no  bravo  Terceiro  Regimento  da  Louisiana.  Juntos, eles tinham visto batalhas ferozes, partilhado sonhos e falado de Deus. Para  Jeremiah, Barrett admitira que a esposa que o esperava no Texas, uma linda mulher  de cabelos escuros e olhos azuis, não era tão religiosa quanto deveria. Muitas vezes  ela não comparecia aos serviços dominicais por pura preguiça. Pecos, seu único filho  era uma criança difícil e voluntariosa:     Aparentemente, herdara as más qualidades da mãe, sendo necessário puni‐lo,  com freqüência, pelos modos desrespeitosos que tinha.  Jeremiah Webster meneara a cabeça num_gesto de entendimento, penalizado  pelo  amigo.  Na  sua  opinião,  não  podia  haver  nada  pior  que  ser  vítima  de  uma  mulher  sem  moral  irrepreensível.  E  fora  isso  que  dissera  ao  amigo,  acrescentando  que talvez fosse melhor Barrett abandonar a esposa.  — Bem que eu gostaria — replicara Barrett. — Mas não posso, por causa do  menino.  Na verdade, havia outra razão para ele não. Abandonar a esposa. A fazenda  no Texas, da qual ele tanto falara para Jeremiah, pertencia única e exclusivamente a  ela. Com a morte precoce do pai, treze anos atrás, a linda Kathryn York tornara‐seuma das mulheres mais ricas do Texas. Na época, ele já a cortejava, a um mês após a  morte de John York, casara‐se com ela.  —    Você  é  um  bom  homem,  Barrett  McClain  —  dissera  Jeremiah  Webster  contemplando o amigo com admiração.   — Vou rezar por você, pela sua esposa e pelo seu filho.  —  Obrigado, Jeremiah. — Barrett ficara emocionado. — E eu rezarei para que  a mulher de sua vida seja tão pura de coração e devota quanto você.  —  Esse é o único tipo de mulher por quem posso me apaixonar  —  Jeremiah afirmara com ênfase, sem saber que a mulher que o destino lhe  reservava faria a de Barrett McClain parecer uma santa.  —  Barrett? — repetiu Emily, notando que ele estava distraído.  —  Recebeu mais alguma notícia dos Webster?  —  Recebi um telegrama, ontem. — Brincando com o lado esquerdo do bigode  branco, Barrett tentou esconder a excitação. — Na próxima quinta‐feira, Jeremiah e a  filha tomarão o barco que vai de Nova Orleans a Galveston. De lá, irão de trem até  Marfa. Se tudo correr bem, estarão aqui no dia primeiro de maio.  Emily tomou um gole da xícara de porcelana, e perguntou:  —  Quantos anos tem a filha desse seu amigo, Barrett? Ela é da idade de Pecos  ou mais velha?  Barrett enfiou a mão no bolso do casaco, tirando um cigarro.  —  Você se importa que eu fume, Emily?  —  Claro que não. — Ela sorriu com doçura. — Já ouvi você falar dessa moça  muitas vezes, mas nunca fiquei sabendo que idade ela tem.  —    Infelizmente,  a  Srta.  Webster  é  muito  nova.  Mas  isso  não  tem  remédio,  tem? Ela precisa da minha ajuda, e eu a ajudarei.  —  Que idade?  —  Dezoito!  Tomado pela raiva, Barrett teve vontade de gritar que aquilo não era da conta  dela,  mas  se  conteve.  Havia  muitos  anos,  Emily  e  ele  viviam  sob  uma  trégua  não  muito firme, se bem que tremendamente necessária. Após a morte de Kathryn, ele  precisara de alguém para tomar conta de Pecos, e ela, solteira e sem dinheiro, tinha  necessidade de um lar e segurança.  Que  eles  não  gostavam  um  do  outro,  todos  sabiam.  Durante  aqueles  anos,  Emily lhe dedicara um ódio profundo e silencioso. Ela nascera no quarto principal do  primeiro andar e nunca vivera em outro lugar. Dez anos mais nova que a irmã, Emily  tinha catorze anos quando o pai morrera. Ela atribuíra a sua pouca idade o fato do11  pai ter deixado tudo que tinha para Kathryn, exigindo apenas, em seu testamento,  que a filha mais velha cuidasse da mais nova. John York também havia declarado,  nesse testamento, estar certo de que a filha mais velha daria à irmã o que lhe era de  direito, assim que Emily atingisse a maioridade.  Kathryn provavelmente teria feito isso, se não tivesse se casado com Barrett  McClain. Quando Emily atingiu idade suficiente para reclamar sua parte na herança  do  pai,  Barrett  já  estava  no  comando  de  tudo,  e  ela  jamais  conseguira  que  ele  lhe  desse uma resposta clara e precisa, quando tocava nesse assunto.  Naturalmente, Barrett sempre lhe assegurava que só precisava pedir para ter  tudo  o  que  queria  e  precisava.  Não havia  motivos para preocupação. Ela confiava  nele, não confiava? Afinal, todos naquela região do Texas sabiam o quanto Barrett  McClain era bom. Ele não ia à igreja todos os domingos? E não rezava sempre? E não  estava  sempre  pedindo  à  esposa  e  ao  filho,  e  também  à  própria  Emily,  que  o  acompanhassem aos serviços dominicais e lessem com ela a Bíblia, para serem puros  de mente e alma?  Emiíy jamais entenderia como Barrett McClain convencera Kathryn a deixar  tudo para ele, em seu testamento. Mas fora isso que acontecera. Ao morrer, aos trinta  e  sete  anos,  Kathryn  deixara  a  irmã,  de  vinte  e  sete  anos,  e  o  filho,  de  onze,  completamente sem dinheiro. Barrett McClain herdara tudo e ainda tivera a audácia  de aparentar surpresa, ao ouvir a leitura do testamento. Comentando que essa era a  vontade  de  Deus,  Barrett  garantira  a  Emily  que  ela  teria  um  lar  em  Tierra  dei  Sol,  enquanto  desejasse.  Emily,  que  nunca  fora  muito  independente  ficara.  Não  tinha  capacidade de ganhar a vida fora e ainda por cima amava o sobrinho como se fosse  seu próprio filho.  Com  os  anos,  a  amargura  que  ela  sentia  em  relação  à  situação  fora  diminuindo.  Bastava‐lhe  saber  que, com a morte de Barrett, seu adorado sobrinho  herdaria tudo. Só isso lhe importava.  Agora,  no  entanto,  Emily  sentia  que  a  herança  do  sobrinho  podia  estar  em  risco. Sentada ao lado do cunhado, ouvindo‐o falar de seu próximo casamento com  uma garota de dezoito anos de idade, ela se arrepiou da cabeça aos pés. Pecos na  certa ficaria furioso quando soubesse da novidade.  Calmamente, ela disse:  — Eu sei que você quer ajudar um velho e bom amigo, Barrett, mas não acha  que está indo longe demais com essa história de casamento? Dezoito anos! Ela é uma  criança, Barrett! Você não pode se casar com uma garota de dezoito anos.  Barrett tragou e soltou vagarosamente a fumaça do cigarro, como se o que a  cunhada dissera não o afetasse em absoluto.  —    Ela  pode  ser  jovem,  Emily,  mas  Jeremiah  me  garantiu  que  é  muito  eficiente.  Desde  que  a  mãe  os  abandonou,  vem  tomando  conta  de  tudo,  na  casa.Jeremiah também me disse que Angie... ahn, a garota... é muito eficiente na cozinha,  na limpeza e...  —  E  o  que  tem  isso  a  ver  com  esse  casamento?  —  Emily  interrompeu‐o,  indignada. — Você tem uma casa cheia de criados, Barrett. Dificilmente ela terá que  desempenhar qualquer tarefa doméstica, não é?  —  Tem razão, mas... É que...  —  Barrett, por que você não traz essa menina para cá e simplesmente a deixa  viver conosco? Não há a menor necessidade de se casar com a coitadinha e...  —    Estou  chocado  com  você,  Emily  York!  —  Barrett  tentou  parecer  tão  indignado  quanto  a  cunhada.  —  Está  realmente  sugerindo  que  uma  moça  solteira  viva comigo, sem as bênçãos da igreja? Todos ficariam escandalizados, e com razão!  —  Isso é ridículo, e você sabe. Eu moro aqui, ela estaria muito bem protegida  de qualquer falatório. Não haveria nada de errado se essa criança vivesse sob o seu  teto. Ninguém pensaria...  Sentindo  o  sangue  subir‐lhe  ao  rosto,  Barrett  apagou  o  cigarro  na  xícara  de  café e inclinou‐se por sobre a mesa.  —  O que você me diz de Pecos?  —  O que tem Pecos?  —  Ele também mora aqui, durante uma parte do ano. E poderia... Se sentir  tentando a... As pessoas falariam!  Emily apoiou os cotovelos sobre a mesa, unindo os dedos sob o queixo.  —  Você sabe muito bem que Pecos passa mais tempo fora do que aqui. Além  disso,  ele  não  dará  a  menor  atenção  a  essa  garota,  a  menos  que  ela  seja  extraordinariamente... Bonita. — Emily fez uma ligeira pausa, depois perguntou: —  Ela é Barrett?  —  Como é que eu vou saber? Eu nunca a vi, e você sabe disso!  —  Hum... Eu só pensei que talvez o pai a tivesse descrito, numa das cartas  que lhe mandou. Ou mesmo lhe enviado uma fotografia.  Barrett quase perdeu a compostura. Seu primeiro impulso foi mentir, mas não  o fez.  —  Jeremiah me mandou mesmo uma fotografia da filha. É meio embaçada,  mas ela me pareceu sadia e de feições agradáveis.  Num gesto lento, Emily baixou as mãos para o colo. Pelo jeito do cunhado,  sabia que a moça devia ser bonita. Uma onda de medo assaltou‐a. Se a garota era  realmente bonita, poderia muito bem convencer o tolo do Barrett a lhe deixar tudo  que tinha depois que se casassem.Tão decidida quanto Barrett a manter a compostura, Emily tentou convencê‐lo  novamente de que não devia casar‐se, usando seu tom de voz mais agradável:  —  Barrett, eu sei que você é um bom homem e quer fazer o que for melhor  pelo  seu  amigo.  Por  favor,  não  se sinta obrigado a casar‐se com essa menina. Já é  muita generosidade recebê‐la nesta casa. O povo de Marfa sabe que tipo de homem  você é, e ninguém verá nada de mal no fato de ter aqui a filha de seu velho amigo  depois que ele morrer. Não quer pensar melhor no que vai fazer? Eu o ajudarei no  que puder, juro! Pelo menos deixe a moça viver conosco uns seis meses, antes de se  casar com ela!  Barrett estendeu a mão para uma colher de prata, pondo‐se a brincar com ela.  —  Teve notícias de Pecos, ultimamente? — perguntou.  —  Não. Há várias semanas que não ouço nada dele. Mas você conhece Peco,  qualquer dia ele aparece.  —    Exatamente!  E  antes  que  ele  apareça,  pretendo  me  casar  com  Angie  Webster. Não quero que Pecos...  —  Alguém falou em mim? — indagou uma voz grave e alegre, vinda da outra  extremidade do pátio.  Emily e Barrett voltaram‐se ao mesmo tempo. Um homem alto e sorridente  caminhava  para  eles.  Seus  cabelos,  de  um  preto  azulado,  brilhavam  ao  sol,  e  seu  corpo esbelto movia‐se com a graça de um felino, cada passo acompanhado pelo som  tilintante de uma espora de prata. A camisa branca e folgada que ele usava estava  aberta até o meio do peito, expondo‐lhe os pêlos escuros e crespos. Um cinturão de  couro  preto  e  macio  pendia‐lhe  dos  quadris,  e  o  cabo  brilhante  de  seu  revólver  refletia os raios do sol, cegando temporariamente o atônito Barrett McClain.  Junto à mesa, o homem alto e esbelto parou, exibindo os dentes muito brancos  num sorriso aberto. Inclinando‐se então para Emily York, envolveu‐lhe o rosto com  os dedos longos e morenos, beijando‐a na testa e perguntando num tom alegre:  — Como vai a minha garota favorita?  Com  um  sorriso  de  boas‐vindas iluminando‐lhe as feições, Emily ergueu  os  braços e segurou as mãos dele.  — Pecos! Você voltou!   

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