Capítulo 9 - Tetê

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Um grito chato. Repetitivo.

Qui, qui, qui, qui.

Quieto! O grito ficou mais alto, mais agudo. Senti uma bicada no nariz.

— Quieto Tetê! — uma voz me acordou.

Senti o bater de asas e as garrinhas do bichinho deixarem minha pele.

— Você que quis um passarinho, tem que cuidar dele. Onde já se viu largar ele solto desse jeito? Vai fugir assim. O bicho quer comida, acorda! — A pessoa deu uma sacudida na coberta, depois abriu a persiana e saiu do quarto. A claridade repentina veio como um beliscão nas pálpebras e uma pontada dolorosa de estímulo luminoso ativou meu cérebro. Eu virei de bruços e afundei a cara no travesseiro, massageando as têmporas, acalmando as pulsações de dor que me afetavam. O sol não me deu trégua e aquecia incomodamente minha nuca. Eu joguei o travesseiro no chão e escutei um guincho. Tetê ainda estava com fome.

Algo aquecia minha pele. Era um calor diferente, não era igual ao sol. Um calorzinho suave, delicado, aconchegante. De repente senti um chacoalhão forte.

— Opa! Buraco na estrada.

Meus olhos se abriram devagar para um céu rosé, meio lilás, meio salmão.

Outra chacoalhada. Pisquei duas vezes. Senti minha mente despertar quando percebi Chelon e Hiz me olhando. Me dei conta de que estava deitada e meu instinto primário foi me levantar, mas meu corpo estava estranho. Além de dolorido, eu sentia ele todo anestesiado, como se meus músculos se recusassem a me obedecer, estavam moles. A lança não atravessava mais meu peito e eu sentia a pressão das faixas que tinham sido enroladas em mim, desesperadamente tentando atar meu corpo. As ataduras agora envolviam meu tronco do umbigo para cima até o pescoço. Então meu coração afundou. Eu estava sem camisa. A faixa cobria por completo meu tórax, mas alguém precisaria ter feito aquela atadura.

— Como se sente? — Chelon perguntou. Eu o encarei sem saber o que dizer, com o temor estampado no meu rosto.

— Meio retalhado? — Hiz tentou fazer piada e eu forcei uma risada. Continuei olhando para ele, esperando algum comentário. Nada.

E agora? Eles sabiam? Por que não estão falando nada?

Fiz um esforço conseguir levantar o tronco, meu corpo ainda estava mole e eu sentia uma tontura leve. O balançar do carro que nos levava aguçou meus sentidos e me ajudou a prestar mais atenção ao que acontecia. Estávamos em um carro aberto, rústico, de madeira escura que não foi polida. Com a palma da mão eu sentia cada farpa e entalhe da árvore usada para a confecção daquela tipoia. Quatro rodas com reforço metálico sustentavam nosso peso.

Eu estremeci ao ver uma figura encolhida, com os pés amarrados e mãos atadas atrás das costas. A cabeça estava coberta com um saco de pano dando a impressão de que levávamos um corpo. Era o prisioneiro que Bramba havia capturado. Me acalmei quando vi que ele respirava e o rabo da criatura se movia. Os ossos e a mandíbula estavam empilhados em um canto ao lado dele, junto de uma sacola do tamanho de uma mochila. Olhei para a frente e vi uma figura desconhecida guiando duas bestas quadrúpedes que puxavam o veículo.

— Onde estamos? — finalmente tomei coragem para falar algo.

— A caminho do senhorio. — Chelon disse.

— Depois que você apagou, eu tive que buscar ajuda. Ainda bem que estávamos na saída da floresta e encontrar esse carroceiro não foi difícil. — Hiz completou.

— Achei que morreria. — falei séria.

Bramba, que escutava nossa conversa no passageiro, ao lado do carroceiro, desatou a gargalhar.

— Se você morresse por um negócio daquele, é porque merecia morrer mesmo. — ele falou quase chorando de rir. Hiz também achou graça.

— Não se preocupe, jamais deixaria você morrer. — Chelon falou.

— Para te matar precisa de uma estratégia muito bem bolada! — Hiz apontou para a própria cabeça e a incerteza de saber se meu segredo havia sido descoberto voltou a me cutucar.

— O que nos surpreendeu foi o veneno que te deixou inconsciente. — Chelon disse.

— Veneno? — eu me espantei.

Chelon pegou a sacola perto dos ossos e retirou uma espada curta, que tinha uma ponta afilada, similar a um gládio.

— Veja a espada do atacante. — Ele me mostrou que um pó esverdeado cobria a lâmina.

— EU não cairia nem com dez doses de qualquer veneno. — Bramba rosnou. — A realeza deveria trocar a frota de Asterianos por uma frota de Fúrias!

— Você não perderia a consciência mas não conseguiria se mover também, disso eu tenho certeza. — Hiz fez uma careta infantil, só faltou mostrar a língua. Bramba soltou um resmungo mas não discutiu.

O carroceiro usava um capuz e não falava muito. Manteve-se quieto boa parte da viagem, apenas atentando-se às bestas que puxavam o veículo. Os quadrúpedes que levavam a carroça eram seres pesados, corpulentos e não pareciam muito ágeis. Seus corpos cobertos de pêlos não permitiam que eu analisasse suas formas. Mas eu conseguia escutar um clonc clonc a cada passada que davam, indicando a presença de patas com unhas grandes, similar a cascos.

O balançar do carro, os buracos na estrada e o som dos cascos batendo, me deixaram sonolenta. O corpo pesava e minha cabeça começou a rodopiar. Eu não estava bem, mas pelo menos não estava morrendo. Me encostei na lateral da carroça, ao lado de Chelon e Hiz e fechei os olhos por um momento. Quase não me dei conta de que minha cabeça agora descansava sobre um tecido grosso, macio.

— Ei! — escutei Hiz protestar, resmungando algo, mas não dei atenção.

— Deixe. Ele precisa de descanso. O veneno ainda continua no corpo dele.

Ahh... ele. Não me descobriram ainda... mas como..?

Me sentia leve, quase flutuante. A tontura não me deixava raciocinar direito, não era terrível, era suportável, como estar entorpecida. Meus sentidos enfraqueciam, eu ouvia menos, enxergava menos, minha pele se insensibilizava ao toque.

— Luísa! Você está alimentando direito essa menina? — Ouvi os gritos da cozinha.

— Nunca faltou comida em casa e você sabe disso!

— Olha o Vito como está gordinho! Porque ela está desse jeito? Será que está doente? Melhor levar ao médico.

— Você acha que já não levei? Está com a saúde perfeita.

— Mas ela tem o que? Quinze anos? Já é uma mocinha, cadê as curvas?

— Eu vou colocá-la numa academia, talvez contratar um nutricionista. Aí já pode ir fazendo um programa alimentar e resolve logo isso. Acho que até os dezoito anos ela floresce.

— Olha, já menstruou? Não é melhor levar no ginecologista? Pode ser hormonal. — minha Vó falou num cochicho mas eu escutei tudo. Fingi que estava absorta assistindo televisão e, eu preferia não ter escutado nada, mas meus ouvidos me traíram. Saí da sala, disfarçando uma ida ao banheiro e fui para o quarto.

Tetê piou feliz assim que abri a porta e isso aqueceu meu coração. Eu sorri emocionada e fui logo abrindo a gaiola que ficava ao lado da escrivaninha de mogno. Ele imediatamente pulou no meu pulso e escalou meu braço até o ombro. Eu fiz-lhe um afago nas bochechas e sussurrei: Eu também amo você, Tetê.

— Acorda!

A TerceiraWhere stories live. Discover now