Capítulo 2 - Revanche

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Disparei, deixando tudo para trás. Minhas dúvidas e questionamentos haviam desaparecido, iria na direção daquela falha sendo uma clareira ou vila, não importava. Eu iria descobrir na hora. Apesar das pernas curtas e de estar carregando um porrete, o bicho era rápido. Mas eu estava há uma boa distância à frente, então mantive o passo, tentando alternar aceleração e passos contínuos. Corri, pulando arbustos azuis, desviando de moitas espinhentas, pisando em fiapos de córregos. Corri mais do que meu fôlego podia suportar, sentindo o pulmão sendo perfurado por mil agulhas. Tive que parar por um momento, apertando meus joelhos com as mãos, precisava me recuperar.

Alcancei meu destino em pouco tempo. Não era uma vila nem um lago, uma pena. Seria uma boa ter contato com a civilização, eu acho. Era apenas uma clareira, não era muito ampla quanto imaginei. Havia três lápides ali, pareciam ser antigas, o campo era cinza, estranhamente não crescia vegetação ao seu redor. Olhei para trás e não vi nem ouvi o meu perseguidor. Me senti segura por um momento e parei um pouco para descansar. Eu estava precisando. Comecei a reparar no local e vi que em um dos túmulos havia uma espada velha cravada no chão. Era visível o quanto estava carcomida e enferrujada. Examinei melhor as lápides, tentando entender o que havia escrito ali, mas era uma língua muito esquisita que me lembrava as letras do alfabeto grego.

Um grito longo e um rugido me assustou. O monstro havia me alcançado. Assim que eu o vi, disparei passando pelas lápides com o intuito de adentrar novamente na floresta, mas um outro bicho surgiu de repente no meu caminho. Era outra criatura que lembrava um duende, só que tinha um focinho longo. Parecia uma mistura de cachorro com porco e sua pele era terracota. Era substancialmente menor que meu primeiro perseguidor.

Eu não tinha como fugir de dois atacantes. Meu corpo estremeceu. Pensei em correr para direita ou para esquerda, mas rapidamente um me cercou. Eu não tinha escolha a não ser lutar pela minha vida. Era a primeira vez que pensava nisso e apenas esse pensamento me assombrou, comecei a tremer. O bicho vermelho, que portava uma machadinha, agitou a arma com violência e por pouco não me atingiu na barriga, mas rasgou um pedaço da minha blusa. Eu dei um pulo para trás e tomei uma investida corporal do outro monstro pelas costas. Senti o impacto em minhas costas e as feridas do meu braço e ombro, voltaram a se abrir. Caí no chão e rolei para o lado, eu sangrava novamente. Tentei me levantar depressa, mas quase não consegui evitar um terceiro golpe de machado. O animal rosnou com satisfação ao ouvir meu grito. Consegui desviar o rosto por um triz, mas meus cabelos levaram a pior. Eu me ergui rapidamente, sem tempo de me preocupar com o que havia perdido. O bicho resmungou desapontado assim que me viu de pé mais uma vez. Ele balançou o machado de novo e perdeu o equilíbrio ao pisar em falso. Eu dei-lhe um chute no focinho e corri para a espada no chão perto da lápide e a puxei. Estava encravada bem fundo, puxei com mais força e ela só se moveu alguns centímetros. Tentei outra vez colocando toda a minha força nessa última tentativa, antes que os monstros me atacassem. A espada saiu junto com um punhado de terra e lama e quando vi o outro monstro já estava perto de mim. Ele deu uma marretada com o porrete, que quase arrancou minha orelha. E num movimento rápido eu o agarrei e o mordi com violência sem pensar no que poderia acontecer. Me assustei com o rugido que ele soltou e, ao perceber que ele ia devolver a mordida, eu o empurrei para longe.

Os monstros perceberam que eu estava armada e contra-atacando. Eles ficaram alertas. Minhas pernas estavam bambas e meu braço mal conseguia manter a espada firme. Eu sabia que uma garota magricela e fracote como eu não tinha chance, mas, por algum motivo, havia despertado em mim uma garra que eu desconhecia e naquele momento eu me recusava a morrer sem oferecer resistência.

Não tire os olhos do seu oponente! Encontre uma abertura ou crie uma. Minha mente me guiava. Todo o treinamento que tive de kendô na minha adolescência veio voando de volta para mim.

Eu olhei para os dois atacantes, agora lado a lado. Eles pareciam confortáveis entre si. Eram humanóides, andavam iguais a mim, sobre duas patas.

Os pontos fracos devem ser similares. Pensei.

Corri em direção ao maior, levantando a espada com as duas mãos e fazendo muito alarde. Imediatamente ele levantou o porrete para proteger a cabeça, e essa foi a minha deixa para eu desviar o caminho da espada e acertá-lo na axila. O monstrengo perdeu um pouco do balanço, largou a arma e caiu de lado, com apenas um arranhão onde eu o havia golpeado.

Maldita espada enferrujada!

Eu tinha que proteger as áreas do rosto, pescoço e barriga. Um golpe nesses locais poderia ser fatal. O monstro da machadinha avançou sobre mim novamente e eu consegui usar a espada para segurar o impacto. O bicho era forte apesar do tamanho diminuto. Ele forçou o machado em minha direção enquanto eu tentava vencê-lo, forçando na direção oposta. Desviei para o lado num movimento rápido e ele caiu com o focinho no chão. Pisei sobre a pata dele, fazendo com que largasse o machado, chutando-o para longe. Tentei decepar o braço do monstro, mas não consegui, apenas fiz um corte profundo. Foi o suficiente para ele uivar de dor e sair correndo com o rabo entre as pernas. O monstro maior gritou indignado e soltou dois roncos e dois rosnados, enquanto me encarava antes de correr de volta para a floresta, deixando para trás o porrete.

Eu desabei no chão, aliviada. Comecei a chorar, num misto de alívio e desamparo. Estava num lugar estranho, com monstros que tentavam me matar, sem saber se sobreviveria mais um dia. Me senti tão perdida e sozinha que me perguntava por que esse sonho estava demorando tanto para acabar. Por que as dores pareciam tão reais? Por que o sentimento de temor não me deixava? Por que, apesar de eu querer morrer para despertar, algo não me deixava desistir de lutar?

Esfreguei as lágrimas dos meus olhos com as costas dos dedos e imediatamente me lembrei da mão direita, a atingida pelo porrete. Não sentia mais dor, o que era muito estranho e aumentou minha suspeita de que eu deveria estar sonhando ou em delírio.

Abri minha mitene rasgada com cuidado esperando a dor para ver o estrago no meu braço empapada de sangue. Mas não senti nada. Me surpreendi ao ver que o ferimento já estava em processo de cura. Eu podia ver tecidos novos e bem vermelhos se formando. Verifiquei meu ombro e estava a mesma coisa e minhas costas ainda doíam um pouco.

Arranquei um pedaço da minha blusa já rasgada e fiz um curativo no braço, vestindo a luva novamente. Parei um pouco para me examinar melhor. Olhei meus dedos, estavam como sempre, apresentavam uma pele mais jovial e saudável que a minha pele fina e frágil que eu estava acostumada. Mas eram minhas mãos de qualquer modo. As luvas de couro vieram bem a calhar, eram feitas de um material maleável, porém resistente. Apesar de ter sido rasgado com o ataque anterior, ainda estava em bom estado.

Olhei para as minhas botas, eram comuns, feitas de um tipo de couro duro. A cor delas era feia, um verde-azulado meio opaco. Reparei nas calças que eu vestia. Eram feitas de uma pele mais fina, meio marrom. Eram horríveis também. A calça ficava presa na minha cintura graças a um cinto de couro escuro. Acoplado a ele havia uma bolsa pequena. Os botões eram brancos e polidos de modo rudimentar. Pareciam feitos de algum osso.

Depois que recuperei as energias, me levantei. Senti a garganta seca e meu estômago roncava. Precisava encontrar água. Peguei a machadinha largada no chão e notei que o animal perdeu uma das presas quando eu o havia derrubado. Peguei o canino dele e guardei na bolsinha. Caminhei até o porrete e o examinei. Era grande e bem rústico. Decidi levá-lo comigo, poderia ser útil. Me senti em um jogo de videogame, coletando espólios de uma batalha. Suspirei.

Até quando precisaria continuar nesse jogo, nesse sonho, nesse pesadelo?

A TerceiraWhere stories live. Discover now