Essa minha paixão doída

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Quando o vi de primeira – foi difícil discernir; achei meio raposinha travessa, mas olhando mais de perto (não poderia me enganar mais!), não passava de um lobo-guará bem-posto. Porém, veja bem, de lobo também não tinha nada, era um cachorro, e apesar disso, não me era muito leal – que tipo de cão é esse, afinal!?

Pois então, parecia raposa, mas era lobo, mas de lobo só no nome, porque na verdade era cão, mas de cão não se assimilava nem o rangido dos dentes, então digamos que de personalidade tinha um quê meio ferino. Aquele típico enigma descontínuo onde os leigos se perdiam diante das inúmeras facetas; quanto mais se afundavam os tolos para desvendar o mistério das suas origens, mais tontos ficavam – e saiam do seu ciclo sem entender nem como chegaram ali para começo de conversa.

Ele era abismo em pessoa.

Quem caia nele, tinha a sorte de cair para morte de outrem, porque uma vez o alvo daqueles olhos sendo acertados pela mira de terceiros, não havia como encarar nenhum outro.

Único e passageiro.

Dos que iam e vinham, me esforcei para ficar e tentar ser o primeiro a sobreviver. Eu caí, apreciei a queda e me esforcei para ficar no chão da masmorra que o afastava do mundo e o protegia dos perigos de conviver com gente. Alma animalesca. Animal. Feroz. Livre. Aí daqueles que tentaram levantar a mão para acariciar a pelagem macia. Ele nunca foi dócil; não, não, era fera. Bruta e pura, um bicho.

Entretanto, mais bicho que gente, inevitável seria o charme. Voz de veludo, olhos ciganos e broto de boca, agradável ao toque, mas impossível de chegar até as mãos. Intocável. Longe e arbitrário. As escolhas sempre seriam dele. Elas eram para ele e apenas para ele. Nunca houve nós ou alguém. Um dia, duvidei que Mo Guan Shan pudesse realmente amar. Ocupado como sempre foi, seu peito já devia estar cheio de si mesmo, como poderia caber mais alguém ali?

"Tudo bem", pensei. Não no seu coração, mas apenas do seu lado: bastava. Eu, que me esforcei para ficar no chão, no castelo de isolamento daquele coração, caminhei ao lado dele. As dúvidas, por outro lado, permaneceram comigo, seria Mo Guan Shan capaz de amar alguém que não apenas ele mesmo? A perfeição já o cabia, e eu não poderia me espremer para caber junto.

— Ei – chamei.

— O que foi? – ele respondeu direto. Simples, curto e grosso, sem nem me olhar.

— Mo Guan Shan – continuei.

— Diga.

Fiquei em silêncio, aproveitando a chama esquiva de sua companhia. Caminhávamos em passos curtos, tão curtos como deveriam ser, arrastando o tempo que seria preciso para alcançarmos o portão. Lento. Nós dois, o campo de terra aberto e o céu entardecido, ofuscando a vista e tingindo as árvores. As gramíneas ariscas arranhavam as pernas a cada passada, mas nem a dor me incomodava o suficiente para desgrudar os olhos daquele rosto esculpido.

— Mo Guan Shan – repeti.

E cada vez que eu chamava seu nome, mel doce – açucarado salpicado e arrastado – se alastrava por meus lábios; um vício constante que fiz questão de repetir por muitas vezes, mesmo não sendo fã das doçuras da vida. Você. Você sempre foi exceção.

Ganhei sua atenção, num misto de euforia e arrepios, não pude desviar nem por um segundo daqueles orbes grandes, repuxados e misteriosamente dourados, outro equívoco: fascínio meu, mas sua isca de prender admiradores.

Olhar intenso, na imensidão de caber o mundo, os enigmas do universo. E eu? Mero cativo. Arbitrariamente prisioneiro do seu pélago áureo.

Ele provavelmente nem notou o que fez. Mas fez, ah se fez. A dois metros do portão, o cercado de flores de Liz já se mostrava lá fora, o canteiro que separava nosso caminho toda sexta-feira à tarde, quando era o momento de ir para casa. Ele para direita, eu para esquerda. Separados. Nosso último momento até a próxima segunda-feira. Mo Guan Shan e seus olhos iluminados; Mo Guan Shan e sua boca de flor, me sorriu com os olhos e me sorriu com os lábios.

Parecia um pouco de tudoOnde histórias criam vida. Descubra agora