UM CLIENTE INCONVENIENTE

0 0 0
                                    

   
       ÁGUA MINERAL

      Mais um dia e lá estava Sérgio, sentado no balcão à espera de algum freguês desocupado que pudesse vir a se tornar um cliente. Àquela hora havia pouquíssimas pessoas no Bar da Esquina e ele já havia dado seu trabalho quase que por encerrado. Mesmo assim, devia manter a animação de um funcionário dedicado e esconder o saco cheio de alguém trabalhando fora do horário de pico.
    Entra um cliente.
    - Olá senhor, já conhece nosso estabelecimento?
    O homem faz uma série de gestos esquisitos e por fim aponta para seu próprio ouvido e faz que “não” com o dedo indicador balançando de um lado para o outro. Observando a cara de paisagem do garçom, ergue uma das mãos e faz como se estivesse escrevendo.
    - Desculpe senhor... eu... não estou entendendo...
O homem (com cara bem desagradável) pega uma das mãos e mostra para o garçom como se fosse a coisa mais óbvia do mundo, depois faz o sinal de caneta e movimenta as mãos como se estivesse escrevendo num papel... e depois continua com os gestos esquisitos...
- É... espere só um pouquinho... Marcos! Cadê você? Vem aqui. Marcos!
Ouve-se uma voz meio embolada no segundo andar:
- Que foi?
- Desce aqui!
À essa altura os outros poucos fregueses no bar já olhavam interessados o incidente e trocavam risadinhas.
Desce um sujeito bem grande pela escada mastigando com a boca bem cheia, o tal do Marcos.
- Caramba, eu tô almoçando.
- Não foi você que fez aquela disciplina de mímica na faculdade?
Marcos era o único subordinado do bar que havia feito faculdade (ou pelo menos uma parte dela). Seu apelido entre os colegas até era “o acadêmico”, mas não podiam chamá-lo assim na frente dos clientes então ficava só às escondidas mesmo.
- Mímica? Que mímica?
- Ué, aqueles gestos, assim ó... – e faz um monte de movimentos aleatórios com as mãos.
- Ah, você quer dizer libras?
- É, é isso aí.
- Mas eu não lembro nem o alfabeto!
- Que alfabeto?
E o surdo esperando...
- O alfabeto manual.
- Existe alfabeto manual!?
Pessoas na rua já olhavam para dentro e começavam a observar o cômico impasse.
- Lógico né.
- Tá, tá. Fala com ele.
Quando o Marcos olha, tem uma cara mau humorada de tédio estampada no rosto do surdo, que mesmo sem escutar, tinha certeza de que estavam falando dele.
- O que... você... quer? – Grita o homem ainda mastigando e mexendo as mãos de um jeito que nem eu sei, achando que assim vai conseguir se comunicar melhor. Bem, foi muito eficiente em se falando de assustar os outros clientes.
- Nossa! Não é que você sabe mesmo, hein acadêmico! – Comenta o outro em tom de brincadeira já até se esquecendo de disfarçar e tentar parecer profissional.
Mas o surdo continua com cara feia.
Então Marcos começou a fazer mímica. Quando viu que só ele entendia o que estava dizendo, tentou se recordar do alfabeto manual.
- Nossa, como era mesmo? Eu sei que o A era assim (fazia a forma com os dedos). O B eu não lembro. Ah o C é esse aqui...
O surdo viu que estava tentando usar a datilologia e usou as letras do alfabeto manual para sinalizar a palavra C A N E T A.
- Que? Pera, faz de novo. – Falou o “acadêmico” como se o sujeito fosse entender o que ele estava dizendo.
O surdo viu a cara de idiota dos garçons e sinalizou de novo, mais devagar.       C A N E T A. E depois disso fez o sinal da palavra caneta em libras. 
Os dois funcionários se entreolharam. Marcos bancando o herói da situação quis pedir ao surdo que fizesse de novo os sinais e intuitivamente moveu as mãos num gesto que dava a entender a ideia de repetir.
Pela terceira vez o surdo fez com o alfabeto as letras. C A N E T A.
- Ahhhhhhh. Entendiiiiii. – Exclama Marcos muito sabido. – Ele quer uma caneca!
- Nossa! Como você é inteligente, acadêmico! Vou lá buscar.
E volta com uma caneca de chope de 700 ml.
E toda a mínima esperança de conseguir se comunicar que o surdo sentiu quando viu a expressão de quem entende alguma coisa no rosto de garçom foi por água abaixo. Ele nem precisou esconder a cara de descontentamento e fez novamente, mais devagar ainda a datilologia. C A N E T A!!!!!!!!
Mas não adiantava. O tal do Marcos parecia nunca ter visto a letra T no alfabeto manual.
O surdo já quase sem paciência, querendo ir embora e morrendo de vergonha da rua inteira olhando indiscretamente para dentro do bar e contemplando o show de piadas que acontecia ali dentro, tentou mais uma vez e fez com as mãos o mesmo sinal de antes, com uma mão ele fingia escrever e a outra era uma folha de papel.
- Ah! Agora entendi! Nossa, por que você não falou antes? Ele quer algo para escrever. Uma... caneta!
- Uau – Responde o outro garçom. – Faz todo o sentido (como se já não tivesse feito o tempo todo). Vou lá buscar!
Foi tamanha a cara de alívio do surdo que os dois ficaram se achando superinteligentes por terem decifrado esse dificílimo enigma. Um quebra-cabeça de quebrar mesmo a cuca de todo mundo.
O surdo apoiou a folha de papel numa mesa, escreveu e exibiu a frase: Quero comprar uma água mineral.
Ele pegou, pagou e saiu dali pensando que nunca mais voltaria naquele bar de novo. Justo naquele dia, esquecera de trazer seu bloquinho de notas ou, melhor dizendo, seu único meio de comunicação aparentemente. Era por isso que vivia pedindo as coisas por Delivery. Assim não tinha que passar por esse perrengue todo.
Os dois garçons se olharam e trocaram risadinhas que até tinham a intenção de serem discretas, mas não eram.
- Até que a gente conseguiu, né? – Comentou o Marcos.
- Tá brincando? Conseguiu sim ôxi. E quando a gente pensa que já viu de tudo...
- Pelo menos tem um lado bom. O pessoal que estava olhando da rua tá entrando. Novos clientes.
- É, pelo menos esses são ‘normais’. Aí a gente tira mais uma gorjeta desse povo.
Entra uma mulherzinha magrela comentando.
- Nossa, que legal. Você sabe esse negócio aí de mexer as mãos, né. Sabe, eu acho tão importante. Que bom que no bar de vocês tem inclusão!
- Sem dúvida senhora! Nós nos dedicamos muito para conseguir esse feito. Aceita um drink?
- Mas é claro!
E em 5 minutos ninguém mais lembrava do surdo.

You've reached the end of published parts.

⏰ Last updated: Sep 07, 2021 ⏰

Add this story to your Library to get notified about new parts!

UM CLIENTE INCONVENIENTE Where stories live. Discover now