Em um de seus costumeiros surtos contemplativos

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 — Não acho que precise disso, eles podem esperar cinco minutos.

 Como se o assunto houvesse o atraído, o garçom posicionou a comida de ambos em sua frente e aceitou o agradecimento de Shimizu com um aceno leve de cabeça, em seguida sumindo cozinha adentro para gritar com uma mulher mais velha que correspondia na mesma energia. Pela intimidade pareciam irmãos discutindo sobre um assunto específico, o qual não interessava muito a nenhum dos dois, na verdade Seki só pensava se seria assim caso ele tivesse o envolvimento de parentes:

 — Mas iria te dar mais tempo pra relaxar, você trabalha tanto...

 Mal sabia ele que havia usado o pior argumento possível, ócio era o que o jovem de cabeleira preta menos desejava para si, não quando o trabalho braçal o distraía tão bem das crises existenciais e todas as questões melancólicas. Preocupação genuína se via na face confusa do outro, as sobrancelhas naturalmente mais altas que a maioria esperando uma resposta para se certificar que não estava atrapalhando com a sugestão:

 — Eu vou pensar.

 Pegou o macarrão meio salgado com os hashis e passou a ingerir o conteúdo da tigela, usando a movimentação repetitiva e o resto do diálogo para não divagar. Mesmo considerando que tiveram que passar anos redescobrindo um ao outro o conforto nunca foi difícil de reinstalar, talvez pela familiaridade do processo. Não demorou para que tudo em cima da mesa se tornasse apenas louça suja, ganhando o surgimento repentino do garçom:

 — Algo mais?

 — Não pra mim, e você?

 Na sua cabeça, este de algum modo já havia retornado a pensar em sua habilidade de usar fogões a gás, seu antigamente insuportável medo de fogo, o prédio do culto de Pégaso e como tudo não havia passado de uma espécie de terapia de exposição extrema. Toda essa ginástica mental que culminava em uma frase inesperada:

 — Uma lata de cerveja e a conta.

 — Mas Seki, você não bebe... — não bastava Koh ser um homem facilmente confundido, o companheiro também tinha que não fazer sentido para ninguém além de si mesmo.

 — Hoje deu vontade.

 Ele certamente não envolveria um profissional, o que logicamente seria o ideal para lidar com assuntos traumáticos profundos, mas médicos eram caros e ele não tinha tal seguridade. Tudo que sobrava eram seus experimentos nada a ver que consistiam de fumar um cigarro volta e meia e agora, aparentemente, beber pela primeira vez na vida. Não havia maneira de ele ser pior que o pai, certo?

 Cada um pagou sua parte e ambos saíram com passos calmos, o exterior os cumprimentando com a brisa fria do início da noite. Provavelmente não deveria beber algo gelado nessa temperatura, era receita para dor de garganta, mesmo assim Masumi não ligou nem um pouco enquanto tomava seu primeiro gole. O gosto era horrível,  o nariz até se amassou levemente em desgosto, péssima decisão e pior ainda era o fato que iria terminar, odiava jogar coisa fora.

 Sem rumo, andaram lado a lado na calçada vazia, Shimizu contando sobre um paciente novo que aparentemente estava lhe dando uma grande quantidade de trabalho, se recusando a tomar remédios e reclamando da comida do hospital. Seu companheiro meio que ouvia, assentindo quando chegava em partes relevantes, todavia passando boa parte da conversa olhando para cima, com a cabeça nas nuvens.

 O mais baixo tomou sua mão de novo, dessa vez para guiar o distraído para dentro de um parque moderadamente movimentado, algumas crianças passaram correndo com adultos repreendendo atrás. Quanto mais andavam passavam por menos pessoas, a movimentação era apenas na entrada, onde haviam barracas de comida e brinquedos com parquinho para os pequenos se divertirem, quando a caminhada parou os dois estavam sozinhos.

Em um de seus costumeiros surtos contemplativosWhere stories live. Discover now