Capítulo Único

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Erika

Eu me machuquei, não deveria ser uma surpresa. Mas, de certa forma era?
Como se fosse somente útil quando estava com Leiftan e agora todo o progresso que havia feito, sem e com ele, se foram. Num piscar de olhos.
Tomei mais um gole do vinho e olhei para Koori, Mateus e Chrome. Não é necessário falar que lembrei do meu próprio trio.
Senti uma queimação nos olhos e os apertei. Subitamente me estiquei sobre a mesa e abracei os três desajeitadamente, obviamente ignorei o  bufo indignado de Koori.
Céus… Uma cópia feminina de Ezrael. Contive um soluço e ri baixinho.
Chrome se desvencilhou do meu abraço, olhando-me com uma preocupação desconcertante.
— Erika, está tudo bem? — Além da preocupação, havia o medo. O mesmo que vi ao me machucar quando o mascote que se assemelhava a um lobo me atacou.
Assenti fracamente, não querendo preocupá-lo. Felizmente, as lágrimas não escorreram, então pude fingir com mais facilidade.
Forcei um sorriso.
Limpei a garganta, me afastando deles e disse:
— Então, vocês acham que Leiftan me ajudaria com meus poderes de aengel?
Koori estreitou os olhos sugestivamente, obviamente capitando meu movimento nem um pouco sútil, no entanto, tanto Mateus quanto Chrome pareciam absortos da mudança abrupta e forçada.
Passando a observar seus pratos como se fossem interessantes.
Koori revirou os olhos e estalou a língua, não totalmente distraída, mas o suficiente para repreendê-los num tom mordaz típico dela — pelo que notei na última semana:
— Como vocês podem ser tão corajosos numa batalha, mas quando se trata de uma simples conversa são tão… — Ela se cortou, os lábios se torcendo para os lados, obviamente irritada.
Deixou de encará-los com um olhar mortal e virou-se para mim, levando a bebida aos lábios, enquanto sugeria:
— Bem… — Bufou, baixando a caneca e pondo uma mão por cima da minha gentilmente. — Pelo que entendi, através dele. — Apontou o dedo indicador sem se virar para Chrome. — Leiftan aceita pedidos vindo de você.
Agora, um sorriso malicioso enfeitava sua face. Minhas bochechas avermelharam-se pela nítida sugestão e não contive um sorriso próprio. O primeiro sem forçar em dias.
Fez uma carranca novamente.
— Huang Hua pensa isso também. — Tirou a mão da minha, agarrando a caneca com ambas as mãos e apertando.
Não posso culpá-la. Estava mais que evidente que Hua estava escondendo coisas de nós. Aquela bala foi uma prova, apesar de Koori não parecer surpresa, apenas irritadiça.
Abruptamente, Chrome exclamou, decidindo oportunamente participar quando percebeu que não teria que falar com Leiftan:
— Simmmm! — Começou a gesticular absurdamente rápido. — Ele sempre te escuta e…
Suspirei baixinho. Sua língua embolada e tropeçando nas palavras. Ele não tinha nem um pouco de tato com bebida.
Levantei-me e ele parou, franzindo o cenho. Não contive meu lado "protetor" e beijei sua testa quando passei por ele para sair. Passando o polegar para suavizar o vinco entre as sobrancelhas.
— Tchau e obrigada. Mesmo. — Sorri tímida para Mateus e Koori que nos encaravam pasmos, mas não por muito tempo, pois foi só eu sair que começaram a rir e gritar. Nitidamente tirrando sarro de Chrome que deve ser o dono do rosnado.
Ri baixinho e segui rumo aos quartos.
Cantarolei "Unraevel", perguntando-me como foi o desenrolar do anime e recordando o tanto de livros, séries e filmes que deveriam ter saído e aqueles que nem tive a chance de terminar.
Uma familiar melancolia surgiu. Meus pais… Sete anos. O que estariam fazendo?
Subitamente colidi com um corpo muito sólido que quase confundi com uma parede, senão fosse pelas roupas escuras e cabelo tão escuro quanto.
— E aí? — Cumprimentei sem jeito. Coração batendo em disparada e o nó ao qual me acostumei tomou seu lugar habitual.
Nevra parecia querer fugir e só… Deus. Desde o momento que acordei só queria conversar com ele, mas tudo o que vivemos pareceu desaparecer como um sopro, algo vívido unicamente em minhas memórias intangíveis.
A queimação retornou.
— Erika… — respindeu condescendente.
Huang Hua e praticamente todos que conheci e ficaram aqui depois dos sete anos me alertaram quanto Nevra. O retorno de seus hábitos e eu entendi. Foi muito tempo para permanecer de luto, mas a frieza com que sou sempre recebida é demais, mesmo de nossos escassos encontros.
— Eu gostaria de conversar. — Soltei de uma vez, foi um milagre não gaguejar.
Nevra desviou os olhos e pigarreou:
— Não posso, vou sair hoje.
— Você tá trabalhando tanto assim?
Quando enrubesceu foi que a ficha caiu. Merda, merda, merda…
— Na verdade, vou encontrar alguém hoje.
Ok. Não é nada demais. Foram sete anos e…
— Que tal amanhã?
De alguma forma o rubor se intensificou. Limpou a garganta.
— Também estarei ocupado com… uma garota.
Oh. Então, ele está em algo mais sério.
— Que bom… Ela deve ser espacial. 
 O que estou fazendo?
Não sei o quê, mas o porquê era óbvio. Queria testar as águas antes de me aproximar ou me afastar para sempre. Sabia que haveriam poucas chances de voltarmos ao que éramos, no entanto, fomos amigos. Agora, não tenho mais tanta certeza.
As promessas e confissões, creio que foram coisas do momento. Se me lembro bem, no instante em que flertei de volta, nós ficamos num limbo até o desenrolar. Nevra deixando de me mandar suas cantadas ridículas e estabelecendo uma amizade que no meu desespero absoluto aceitei prontamente. Foi isso. Algo fruto da ilusão de um porto seguro mútuo.
Ao contrário do que pensei, Nevra encarar-me de imediato não fez nada para acalmar o sentimento de que tudo começou errado e que não era para ser.
— Não, amanhã é outra.
Havia um toque de insegurança em seu tom ou eu estava projetando o que queria que acontecesse?
Houve uma pausa desagradável até que quebrei o silêncio sufocante:
— Isso é bom.
Seus olhos me analisaram com uma expressão totalmente desnuda da máscara que há não muito tempo usava.
Meu coração pulou uma batida. A confirmação de que Nevra de forma inconsciente ou mesmo consciente gostaria da minha permissão ou consentimento para seus relacionamentos.
Não no sentido de permitir, mas estar tudo bem entre nós.
Sorri para o garoto que me fez pela primeira vez amar e me sentir amada. Havia acabado e ia lidar com isso.
Demoraria e estava tudo bem. Meu luto passaria, como o de todos passou.
Então, abruptamente, o tapete sob meus pés foi puxado. Tudo mudando tão rapidamente que nem consegui acompanhar. Nevra fechou a cara, uma carranca estabelecida em seu rosto a pouco inseguro.
— De qualquer forma, essas perguntas sobre minha vida são irrelevantes. Se me der licença?
Não havia nada melhor para expressar do que eu "buguei", totalmente chocada com a mudança repentina.
Franzi a testa mediante sua resposta babaca e meu nariz se torceu.
Uma resposta na ponta da língua, já cansada de ter paciência e aceitar, quando obviamente era uma via de mão única.
Estava pronta para abrir a caixa de ferramentas, quando novamente o tabuleiro mudou. Os olhos de Nevra se estreitaram e mostrou os dentes, rosnando.
Mudei meu foco para o novo participante que surpreendentemente ou não, era Leiftan.
Estava corado e não me parecia mais tão para baixo quanto antes.
— Que honra você se juntar a nós. Mas, não se sinta obrigado, vivemos bem sem você nesses sete anos.
Ai. Sabia que foi direcionado a Leiftan, todavia, também me acertou.
Os ombros de Leiftan se endireitaram e ele ergueu o queixo, sua trança caindo atrás de si.
— Eu entendo perfeitamente sua raiva, Nevra. Mas não vim aqui para brigar.
Nevra bufou e balançou a cabeça para os lados. Seus lábios se torcendo num sorriso feio, que nunca havia visto. Nada ali era como o Nevra que conheci.
Ira, amargura e ressentimento o caracterizaram nesse instante.
Ele riu sem humor, olhos ardentes em Leiftan.
— Deixe-me adivinhar. Veio encontrar sua alma gêmea?
Até aqui estava aturdida demais para me envolver. Eles estavam agindo como crianças, Nevra mais irritadiço  que Leiftan, não duvidava que sairiam no soco em breve ou pior.
— Se está falando de Erika, sim. Vim encontrá-la.
Senão o conhecesse, diria que estava calmo, claro que suas mãos estavam tão apertadas que os nódulos estavam brancos. Com certeza, se enxerguei isso, Nevra também deve.
— Vá em frente, toda sua.
Leiftan abriu a boca para continuar com a discussão, porém, intervi:
— Dá pra parar! — Exclamei.
Desde que começaram o bate-boca pareciam perceber pela primeira vez minha presença.
— Erika… — Começaram ao mesmo tempo.
— Calados os dois! Merda! — Respirava com dificuldade mediante minha explosão, no entanto, isso não foi o suficiente para acalmar o calor que irradiava e o nó que triplicou de tamanho na minha garganta.
— Eu vou indo. — Nevra se pronunciou segundos depois.
— Tá indo o caralho! Vocês vão ficar aí e vamos conversar.
Seus olhos arregalaram-se, mas estava pouco me lixando. Precisava acabar logo, senão me arrependeria de manter as palavras trancadas.
Respirei fundo e falei numa voz mais contida, entretanto, esbajando raiva e impaciência, as palavras saindo embaladas:
— Eu tô tão cansada e só faz uma semana. Parece mais do que isso e o que nós fazemos? Estamos nos afastando invés de nos ajudarmos a passar por isso mutuamente. Inferno. Só restou nós e Jamon. Chrome e Karenn eram só crianças, mas estão agindo com mais maturidade do que qualquer um aqui…
Fui cortada bruscamente por Nevra:
— Erika, já chega disso. O que está feito está feito. Tenho coisas melhores do que conversar sobre algo que ocorreu há sete anos.
Era assim que ele iria jogar?
Ri quase histérica, completamente desacreditada. Nevra estava sem argumentos ou simplesmente sendo um cínico do caralho?
— Você tá falando sério? Porque cara, há uns cinco minutos você falou sobre isso jogando na cara do Leiftan. Isso é não querer falar sobre "algo" que aconteceu sete anos atrás? — Ri novamente, me aproximando dele que se afastou mediante minha aproximação.
Apontei o dedo no peito de Nevra. 
— Para você foram sete anos, para mim e Leiftan foram horas. Passamos dias lutando juntos, perdendo amigos e, sim. Leiftan errou. Mas, se fossemos apontar os dedos completamente, todos vocês erraram comigo. Miiko e você tiraram vantagem de mim em um momento de vulnerabilidade e simplesmente fizeram meus pais se esquecerem de mim! Você está ok com isso?! Mas quando Leiftan e eu nos sacrificamos para manter essa maldita terra a salvo, eu volto e você fica sendo um babaca com falta de empatia para ver o quanto essa situação é fodida para todos!
No final, simplesmente perdi a estribeira e me exaltei ao ponto de sentir lágrimas no meu rosto e que não consegui conter. Simplesmente incrível! Solucei e me esquivei das mãos que tentaram me tocar.
— Não! — Passei a mão pelo rosto que não interviu a nova remessa de lágrimas, mas pelo menos, me deixou enxergar melhor. — Você tem um pouco de noção do que foi perder meus amigos e não ter um período decente de luto, porque todos a sua volta esperam que esteja bem? Foram sete anos para todos, mas Leiftan e eu ficamos para trás e a coisa mais decente a se fazer seria nos apoiar ou tentar não ser um imbecil por completo. Mas, aqui estamos nós.
Fiz um sinal de mão, indicando nós três.
— Sério, eu não esperava que você estivesse me esperando ou o que fosse. Mas, eu esperava o cara que disse ser meu amigo e que eu perdoei após me dar uma poção para ser esquecida. Eu entendo o que estávamos passando e os riscos, mas… — Fiz uma pausa. Se continuasse, voltaria a chorar e não era o que queria. 
Respirei fundo. 
— Eu não te entendo Nevra, acho que nunca o fiz. Porque de outro jeito, teria notado o quão ingênua fui ao me entregar inteiramente a um relacionamento que nitidamente não iria para frente, nem mesmo a amizade e companheirismo que acreditei termos.
Ao contrário de mim que em momento algum desviei meus olhos dos seus, sua atenção foi para as bandagens no meu braço.
— O que aconteceu? 
Zombei fracamente.
Leiftan pigarreou atrás.
— Minha fala é a mesma para você. Vocês me desapontaram muito, sei que não fui perfeita, ninguém é. Mas, vê-los se afastar sem mais nem menos dói mais do que fizemos no passado.
O turbilhão de emoções que ameaçavam transbordar cessou. Uma calma assustadora me saudou.
— Bem, temos companhia. — Informou num sussurro.
Era minha deixa. Nenhum dos dois parecia interessado em acrescentar ou discordar. Virei-me em meus calcanhares, pronta para ir.
Foi quando uma mão grande agarrou meu pulso — no braço não machucado —, encarei seu dono. Seus olhos estavam em algum ponto além de mim, as sobrancelhas juntas e o canto dos lábios apertados.
— Eu… — Baixou o olhar. — Você não pode sair assim.
Estava mais do que pronta para retrucar, até que a ficha caiu. Demorou, mas foi rápido o suficiente para não acabar com isso da maneira errada e causar no distanciamento total de Nevra.
À distância escutei Leiftan afastar quem quer que fosse, deixando-me concentrada no vampiro diante de mim. Era quase o garoto que conheci, quase. Senão fosse as roupas elegantes e cabelo arrumado, diria que nada mudou, claro, havia a falta do tapa-olho, mas… Deus.
Meu coração batia rápido e meu estômago estava se remexendo. Eu demoraria demais para deixar de amá-lo.
Engoli em seco e percebi que não havia dado uma resposta ainda, no entanto, sua mão não havia soltado.
— O feitiço virou contra o feiticeiro, hein? — Brinquei suavemente para aliviar a pontada de nervosismo que senti.
— Não há mais ninguém para nos… Para atrapalhar vocês.
— Obrigada. — Agradeci.
— Não vai se juntar a nós? — Nevra pediu.
— Acho que não…
 O interrompi depressa:
— Leiftan… Por favor.
Esperava que isso fosse o bastante, algo me disse que Nevra fez algum tipo de sinal que resultou na afirmativa dele. Estava nítido isso, pois seus ombros se curvaram e um sorriso cansado surgiu.
— Sim, vamos.
— Meu quarto?
Os dois grunhiram em concordância.

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