Parte I - Além do Véu

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Era uma noite escura e fria de inverno. O céu era iluminado vez ou outra por um raio, anunciando mais uma tempestade torrencial iminente, comuns na região norte de Malicerus naquela época do ano. O vento uivava distante, como um prelúdio do que estava por vir. Uma névoa pesada encobria ainda mais a visão de qualquer desafortunado que passasse por aquele reino recentemente assolado pela guerra. O frio, congelante e implacável, dificultava até mesmo o simples ato de se respirar.

Naquela noite agourenta, saindo de dentro de uma densa floresta tão ameaçadora quanto à tempestade que se anunciava, surgiu uma figura esquálida que corria desesperadamente: ele era mais alto que um homem comum, mais magro que um elfo desnutrido, mais velho que qualquer ser vivente que se tinha notícia, possuía cabelos e uma longa barba grisalhos, e estava com uma aparência cansada; usava uma túnica e um chapéu pontudo cinzas que já haviam presenciado dias melhores. À tiracolo trazia uma lanterna de metal escurecido, mas a vela dentro dela já havia se consumido totalmente e apagado há tempos, nem ele mesmo sabia como havia conseguido se guiar até a saída através das brumas daquela floresta maldita e traiçoeira que deixava cada vez mais para trás. A brancura da capa que o protegia, presente de um velho amigo que não estava mais entre eles, já quase não podia mais ser vista, encoberta por lama e sangue, advindos da recente batalha travada no Véu da Neblina. Trazia junto consigo, em uma das mãos, uma espada azulada reluzente que empunhava em posição defensiva, como se esperasse que a qualquer momento algo surgisse para atacá-lo; na outra mão trazia um cajado de madeira nodoso e desgastado, um bom apoio para um velho cansado.

O velho continuou correndo tropegamente por um grande campo aberto coberto por relva, pedras, raízes e ervas daninhas que o açoitavam com seus espinhos, cortando suas vestes e sua carne. Era como se sua vida dependesse do quão longe cada passada de suas pernas pudesse alcançar, e nenhuma gota de seu sangue que caia no solo o faria titubear.

A figura sofrida prosseguiu no seu ritmo por um longo tempo até chegar a uma estrada de terra batida. O caminho estava deserto, mas, mesmo pressentindo o quão ruim aquilo significava, tratou de seguir por ele. A exaustão lhe consumia, a dor dos seus ferimentos o tentava a fazer uma pausa na longa jornada até ali, mas ele sabia que não havia mais tempo, pois o peso que carregava consigo não era apenas o do metal de uma simples espada, era o de ser o último conhecedor do que estava chegando e do que se escondia além do Véu. Todos os seus aliados foram mortos lá, a visão aterradora dos companheiros caindo em batalha ainda era presente em sua mente, o fogo e o sangue também, bem como a escuridão opressora vinda da Fenda do Dragão e que tomava conta de tudo, e de todos.

— Tenho que conseguir... tenho que conseguir... — Era a única coisa que se podia ouvir sendo balbuciada por ele em meio aos estrondosos trovões cada vez mais próximos.

Durante seu árduo trajeto, uma tempestade pesada desabou sobre o velho, lavando a terra e o sangue que cobriam seu corpo e seu rosto. Os açoites da água sobre ele eram como um alento diante da aparência grotesca que carregara até então, mas o peso de suas vestes encharcadas não ajudava muito no seu martírio, e a estrada, já rapidamente transformada em um lamaçal pela constante chuva, fazia-o sentir que o ritmo dos seus passos estava ficando cada vez menos cadenciados, mesmo ele se esforçando para fazer o contrário.

Contudo, após tudo o que havia passado, o sofrimento do velho parecia estar chegando ao fim, pois depois da longa jornada guiado pela fraca chama azul que se propagava da espada, finalmente avistou sua primeira parada: um pequeno e acolhedor vilarejo na base da Montanha Azul. Ele ainda manteve a espada em punho, mesmo temendo que a claridade da lâmina atraísse alguma atenção indesejada, prosseguiu até a guarita, que estava estranhamente vazia, e adentrou na vila de onde sua mente tentava buscar por boas lembranças. Andar pelas vielas escuras e enlameadas que cortavam as várias casinhas de pedra e madeira, amontoadas umas do lado da outras, o fazia pensar no quão bom seria finalmente poder se sentar ao lado de uma lareira e um caldeirão de sopa quente de legumes na taverna mais próxima, porém ele sabia que o motivo de estar ali não era tão agradável, tampouco duvida se teria tempo para tal deleite; principalmente porque, logo que adentrou na vila, percebeu que algo estranho estava no ar: em uma noite fria de inverno e com a chuva que começara a cair, não havia sinal algum de fumaça no topo das chaminés de nenhuma das pequenas casas.

A Espada de Prata - O arauto do geloOnde as histórias ganham vida. Descobre agora