Capítulo I - O Monastério

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"Quem come a minha carne e 
bebe o meu sangue permanece em mim
e eu nele." 

                               — João 6:56


19 de dezembro de 1808
Toledo, Espanha


O corpo do homem pesava sobre os estreitos ombros de Luna. Era um enfermo esquelético, porém, por estar desfalecido, a inconsciência o fazia pesar mais do que a jovem noviça conseguia suportar. No entanto não havia escolha. Precisava tirá-lo dali.

Luna andava curvada, amparando a parte superior do tronco do enfermo, enquanto desviava das pedras e madeiras que caíam ao seu redor. As explosões feriam seus ouvidos, mas não pareciam acordar o homem. Ela olhou, de relance, para trás. A enfermaria, que havia deixado há menos de cinco minutos, já não existia. Apenas destroços e escombros ocupavam o caminho de volta. A única certeza era que precisava seguir em frente.

Já era a segunda vez naquele ano que as tropas de Napoleão invadiam a cidade. No entanto, Luna nunca imaginara que a guerra pela independência da Espanha poderia trazer tamanha destruição ao mosteiro. O fogo se instalava por toda parte, enquanto ela tentava desesperadamente salvar o homem em seus braços.

De repente, o peso sobre seus ombros se tornou mais leve. Encostada contra o seu pescoço, a cabeça do homem começava a se mover. Seus pés começavam a tocar o chão por conta própria e não mais a se arrastarem obedientes aos movimentos impostos por Luna.

— Senhor! Acorde, senhor! Os franceses chegaram ao monastério. Precisamos fugir!

Ele tossiu, deixando um pouco de sangue manchar o hábito branco de Luna.

— Onde...? — Sua frase foi interrompida por uma explosão que os empurrou para frente, fazendo Luna perder o equilíbrio. O homem tentou segurá-la, mas foi inútil. Ambos caíram no chão, catapultados um sobre o outro.

A noviça rapidamente se pôs de pé, tirando seu corpo de cima do dele.

— Vamos! Precisamos chegar às catacumbas, senhor. Levante-se!

Ele fez um muxoxo.

— Eu estou atrapalhando, o melhor é deixar-me. Salve-se, senhorita.

Luna olhou para o homem. Mesmo depois de tanto tempo dedicando cuidados a ele naquela enfermaria, era como se, naquele momento, o enxergasse pela primeira vez. Por trás das elevadas maçãs do rosto raquítico, havia um jovem. Devia ser tão jovem quanto ela, cerca de dezesseis anos. Seus olhos estavam cansados e seu rosto angular dava ares de fragilidade, no entanto, suas palavras tinham força. Queria que ela seguisse sem ele.

Apesar de ser noviça há quase um ano naquele monastério, Luna não havia escolhido por opção própria uma vida religiosa. Contudo, ser boa não dependia disso. Independentemente do que ele dizia, jamais o abandonaria. Jamais abandonaria alguém.

— Desculpe a franqueza, senhor, no entanto, devo ressaltar que, no tempo que estamos perdendo com a sua melancolia, já estaríamos a salvo.

Ele pareceu chocado com o comentário, mas assentiu. Forçou o corpo a se erguer e se apoiou novamente em Luna. Os pedaços de madeira e rocha continuavam a cair em torno das duas figuras, que seguiam sem olhar para trás.

— Não!

Luna nunca fora uma pessoa derrotista, contudo a visão do acesso às catacumbas coberto por pedras a fez titubear. Entre os escombros, a mão de alguém que havia sido atingido estava decepada ao lado de um braço soterrado.

Travessia da LuaWhere stories live. Discover now