I - Recordações

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Maio de 2001

Era sexta-feira, o último dia de aulas da semana e o último minuto da aula preferida de Luzia, História. Ela absorvia cada minuto de cada aula como uma dependente. A professora Julieta sabia o que fazia, como envolver e transportar, os seus alunos, a cada época.

Luzia saiu ao toque da campainha e atravessou o corredor enorme, onde portas e janelas de um liceu centenário se misturavam com bancos e armários já dominados pelo mofo, tão característico da região.

Lembrou-se, de repente, que se tinha esquecido do seu MP3 no cacifo e não poderia passar sem ele no fim de semana.

Voltou atrás, para o ir buscar, mas um suspiro e um derrubar de algo ao chão captou os seus ouvidos. Olhou de soslaio e... Não podia ser! A porta entreaberta da sala, onde tinha tido a última aula, denunciava algo muito errado. Aquela professora não! Aquele professor... mil vezes não!

Correu, então, sem nunca parar nem olhar para trás. Aquilo que tinha acabado de ver, tinha mexido consigo de uma forma assustadora!

Na saída, esbarrou com o porteiro que a tentou deter, mas nunca parou. Também a Francisca, que conversava com o António na esquina do Palácio da Conceição, ainda a chamou, mas nem arriscou olhar.

Avançou pelas ruas empedradas, de uma calçada negra, velha e polida, como louca. Atravessou o parque junto à Pousada da Juventude e entrou no Jardim António Borges, quase a sufocar, deixando envolver-se pelo ambiente.

Duas crianças, uma pelos seus quatro anos e outra menor, davam o balanço com as pernas, no balancé do lado direito, logo à entrada do portão sul. As mães, deduziu, entretinham-se vigilantes numa conversa animada. Ao seu lado, duas lancheiras deixavam antever que ali lanchariam. Mais à frente, na esplanada do pequeno bar, aberto apenas sazonalmente, três senhoras, na casa dos trinta anos, comiam o famoso bolo de chocolate ali servido. Do lado esquerdo do bar, quase encostado ao muro paralelo à Escola da Vitória, um senhor lia um livro, descansado numa rede. Por aqui e ali, casaizinhos, da sua idade e outros mais novos, se entregavam a prazeres (pouco) permitidos em público. Os riachos do jardim estavam tranquilos e apenas se ouvia o coaxar das rãs, medrosamente escondidas, entre as pedras cheias de musgo e lodo, a fazer concorrência ao chilrear da passarada.

Assim que avistou o seu sítio preferido, aliviou o seu coração. Aquela árvore era um dos seus "cantos de tranquilidade". Recostou-se, ofegante, nas suas raízes, tentando serenar a respiração e conseguiu, finalmente, beber um pouco de água que trazia na mochila.
Levou a garrafa à boca e bebeu sem respirar, quase se engasgando!

Aquela imagem não saía da sua cabeça! Eram braços, pernas, cabelos... tudo embrulhado num só pacote. Como iria encarar aqueles dois professores na segunda-feira?

Procurou afastar pensamentos perturbadores e fechar os olhos, inspirando e expirando e, talvez, meditando um pouco.

Uma risada longe fê-la abrir os olhos e por momentos sentiu-os nublados. Localizou o riso e surpreendeu-se com um grupo de rapazes, borbulhentos e desajeitados, que se organizavam para pousar para uma fotografia. Tentou contar quantos eram. Seriam, talvez, uns sete mais aquele que capturava a cena de costas para si. Seriam talvez oito rapazes.

Voltou a fechar os olhos, serenar mais um pouco e quase adormeceu.

Momentos depois, sentiu umas leves gotas refrescarem o meu rosto. Abriu de imediato os olhos, pensando que começara a chover. O que não a surpreendia, pois, fazer sol e chover minutos depois era bem característico dos Açores.

E, de novo, ouviu uma risada e apercebeu-se que alguém corria. Era o rapaz que captava a foto, ainda há pouco tempo, que seguia para junto do seu grupo de anormais.

Só podiam estar a brincar! Ela não poderia sossegar um pouco?

Limpou a cara com a manga da sua blusa de falsa seda azul-água, que não era lá muito absorvente, pelo que mais molhou do que enxugou. Voltou a olhar para o grupo de rapazes e viu, de relance, a cara daquele que fotografava, ainda há pouco, e que supostamente era o criminoso que a acabara de molhar. Era, de todos, o mais engraçado. Usava uns redley de xadrez vermelho e preto, daqueles que ela sonhava ter. Vestia umas calças de ganga russa e uma camisola preta folgada. Na cabeça, usava um chapéu a cobrir o seu cabelo escuro e à volta do pescoço lá estava a máquina fotográfica pendurada. Tinha um bom ar, mas tinha sido desagradável, pelo que abanou a cabeça para os lados, em repreensão, e voltou ao seu sossego. Pensou, ainda, no seu MP3 e como daria tudo para o ter consigo naquele momento.

Decidida a ler um pouco, enfou a mão na mochila e retirou os dois livros que lá estavam. Um deles, o tão obrigatório como demorado Memorial do Convento, de um tal de Saramago. Era o livro que a professora Mitó tinha referenciado para leitura. O outro tinha escrito na capa Orgulho e Preconceito e era de uma tal inglesa chamada Austen. Era um livro que tinha retirado, naquela manhã, da prateleira da mãe, por ouvi-la falar com as amigas mais do que uma vez sobre ele.
Não sabendo por qual optar, resolveu escolher o último porque, como tudo o que vem por obrigação não tem graça, o primeiro tinha já o seu tempo destinado e, portanto, tarde ou cedo, retomá-lo-ia.

Abriu o livro e... perdeu-se naquela escrita.

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Olá a todos! Se chegaram até aqui, eu já fico super contente :)

O Jardim António Borges, em Ponta Delgada, é belíssimo! A árvore que a Luzia fala neste capítulo é enorme e as suas raízes parecem um labirinto. Prometo que, assim que terminar a quarentena, vou lá a correr fotografar e trazer um original para vos mostrar. 

Estou a começar este livro por diversão. Escrevi os dois primeiros capítulos e entusiasmei-me. Agora será difícil parar, então, vou partilhando com vocês por aqui.

Gostava de saber as vossas opiniões, o que sentiram ao ler, o que acham que pode ir acontecendo, que personagem gostariam de conhecer melhor...

Entretanto, caso considerem merecedor, agradecia que colocassem Gosto.

Dos Açores (Portugal) para o mundo em plena Quarentena!**

Um Olhar Preso no HorizonteWhere stories live. Discover now