2. A última despedida

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– Lipe, me responde por favor. Há meses não nos falamos. Eu tinha tanta coisa pra te dizer...

O som da voz de Anarina fez Filipe recuar por um momento. Relutante, olhou para o rádio que repousava sobre a mesa ao seu lado. Esticou o braço, os dedos quase tocando o aparelho, até que parou. Sacudiu a cabeça, afastando qualquer pensamento que o desviasse do foco. Havia perdido tempo demais com suas próprias necessidades quando deveria se preocupar em cumprir sua promessa. Durante os últimos meses a debilitada saúde da mãe se deteriorou ainda mais. E após duas paradas cardíacas o médico da família informou que lhe restava pouco tempo de vida. Filipe não permitiria que ela partisse sem que cumprisse a promessa de que a mãe andaria novamente, nem que por uma última vez. E concluiu que para isso sua dedicação ao projeto deveria ser total. Sem distrações. Sem interrupções.

O quarto de hóspedes – vulgo laboratório – era onde Filipe ficava a maior parte do seu tempo há quase um ano

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O quarto de hóspedes – vulgo laboratório – era onde Filipe ficava a maior parte do seu tempo há quase um ano. Chegava a passar dias e noites, almoçando sob muita insistência da governanta e dormindo apenas quando o corpo, levado ao extremo, o derrubava sobre os equipamentos. O local era entulhado das mais variadas máquinas, montadas e desmontadas, peças de todos os tamanhos e aspectos, cabos, metais, porcas e parafusos. E por mais que faltasse espaço para se movimentar sem esbarrar em algum componente, tudo era minuciosamente organizado de acordo com um critério que só o garoto conhecia. E ainda que o local estivesse repleto de experimentos inacabados, um em especial tinha sua total dedicação nos últimos meses.

– Vamos lá, sua linda. – Murmurou, após apertar a última porca. – Apenas funcione dessa vez, por favor.

Escorregando os dedos por trás da peça robótica que imitava uma perna, pressionou um botão oculto fazendo-a emitir alguns estalos e iniciar alguns movimentos articulados.

– Isso! Isso! ­

A euforia tomou seu rosto, onde um sorriso surgiu em meio à graxa. Sorriso que não se sustentaria por muito tempo pois em poucos segundos a máquina esfumaçou e parou de funcionar. Frustrado, Filipe emitiu um grito alto, arremessando uma ferramenta que acabou por quebrar um espelho. Não demorou para que a governanta batesse à porta:

– Filipe? O que aconteceu?

– Eu estou bem, Adélia. Não se preocupe. – Abriu a porta apenas o suficiente para olha-la por uma pequena fresta. – Foi só uma ferramenta que caiu.

– Precisa que eu limpe...

– Não! ­– Interrompeu-a irritado. – Já disse que estou bem!

A senhora obesa se afastou ensaiando uma saída, até que a lembrança de algo a fez retornar, girando sobre as próprias pernas. – Ah! Seu pai ligou. Disse que só volta na próxima semana.

Um muxoxo de resignação escapou-lhe ao ouvir a notícia. E enquanto a outra se distanciava balbuciando algo sobre a palidez do garoto e a falta de sol, ele fechou a porta encarando o estrago que havia feito no espelho. Aproximou-se, contemplando nele o próprio rosto multiplicado e dividido, distorcido pelos estilhaços. Repentinamente algo lhe veio à mente. Olhou para um canto e fitou a bolsa que Anarina havia levado há meses e que ali ficara, sem receber muita atenção. Decidiu explorar seu interior, procurando o que quer pudesse lhe ser de ajuda. E quem sabe encontraria algo ali?

O FANTÁSTICO PARADOXO DE OURO FUNDO - VOLUME IIWhere stories live. Discover now