OS ACONTECIMENTOS DO VERÃO

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  Durante toda a primavera tinham chegado trens da Hungria;de cada dois prisioneiros, um era húngaro. O húngaro tornarase,depois do iídiche, a língua mais falada no Campo.No mês de agosto de 1944, nós, que havíamos chegadocinco meses antes, já estávamos entre os velhos. Sendo assim,nós do Kommando 98 não estranhamos que as promessas recebidase a aprovação na prova de Química tivessem ficado semconseqüências. Nem estranhamos nem ficamos especialmentemagoados; afinal, tínhamos certo receio de mudanças. "Ao mudar,muda-se para pior" - era um dos lemas do Campo. E, emtermos mais gerais, a experiência já nos demonstrara mil vezesa inutilidade de qualquer previsão: para que atormentar-se tentandoprever o futuro, se nenhuma ação, nenhuma palavra nossapoderia alterá-l o em nada? Já éramos velhos Hiiftlinge; nossasabedoria estava em "não tentar compreender, não imaginar ofuturo, não atormentar-se pensando como e quando tudo issoacabaria, não fazer perguntas nem aos outros nem a nósmesmos".Ainda guardávamos as lembranças de nossa vida anterior,mas veladas e longínquas e, portanto, profundamente suaves etristes, como são para todos as lembranças da infância e de tudoque já acabou, enquanto o momento de nossa chegada ao Campomarcava para cada um de nós o início de uma diferenteseqüência de lembranças, recentes e duras, continuamente confirmadaspela experiência presente, como feridas que tornassema abrir-se a cada dia,As notícias, ouvidas na fábrica, do desembarque aliado naNormandia, da ofensiva russa e do frustrado atentado a Hitler,118suscitaram ondas de esperança, violentas mas fugazes. Cada umde nós sentia, dia após dia, suas forças se acabarem, sua vontadede viver se esvair, a mente se ofuscar. A Rússia e a Normandiaficavam tão longe, e tão perto o inverno, tão concretasa fome e a desolação e tão irreal todo o resto. Parecia impossívelque existisse realmente um mundo e um tempo, a não sernosso mundo de lama e nosso tempo estéril e estagnado, parao qual já não conseguíamos imaginar um fim.Para os homens vivos, as unidades de tempo sempre têmum valor, tanto maior quanto maiores são os recursos interioresde quem as percorre, mas, para nós, horas, dias, meses fluíamlentos do futuro para o passado, sempre lentos demais, matériavil e supérflua de que tratávamos de nos livrar depressa. Acabarao tempo no qual os dias seguiam-se ativos, preciosos e irreparáveis;agora o futuro estava à nossa frente cinzento e informecomo uma barreira intransponível. Para nós, a história tinhaparado.No mês de agosto de 1944, porém, começaram os bombardeiosaéreos na Alta Silésia e continuaram, com pausas e reiníciosirregulares, durante tudo o verão e o outono, até o desfechodefinitivo.O monstruoso trabalho comum de gestação da fábricaparou de repente e logo descambou numa atividade desarticulada,convulsa e febril. O dia em que deveria começar a produçãode borracha sintética, que em agosto parecia iminente, foi' repetidamenteadiado até que os alemães acabaram não falandomais nisso.O trabalho construtivo cessou; a força do infinito rebanhode escravos foi dirigida para outro rumo e tornou-se cada vezmais indócil e passivamente hostil. Após cada bombardeio,sempre havia novos estragos para consertar; havia que desmontare retirar o delicado maquinário que poucos dias antes tínhamosposto a funcionar com tanto trabalho; erguer a toda pressaproteções e abrigos que no teste seguinte já se revelavam risivelmenteinconsistentes e vãos.Acreditáramos que qualquer coisa seria preferível à monotoniados dias iguais e implacavelmente longos, à pobreza119sistemática, ordenada da fábrica em fase de trabalho, mas tivemosde mudar de opinião quando a fábrica começou a desmoronarao redor de nós, como que atingida por uma maldiçãona qual nos sentíamos incluídos. Tivemos de suar entre a poeirae os destroços ardentes, tremer como bichos debaixo da raivados aviões. À noite, voltávamos ao Campo exaustos, sedentos,nesses longos crepúsculos cheios de vento do verão polonês, eencontrávamos o Campo devastado, nada de água para beber ese lavar, nada de soja para as nossas veias vazias, nada de luzpara defender nosso pedaço de pão, um contra a fome do outro,nem para achar, de manhã, os tamancos e a roupa 110 infernoescuro e ululante do Bloco.Na fábrica esbravejavam os trabalhadores externos alemães,no furor do homem seguro de si que acorda de um longosonho de domínio e vê a sua ruína e não consegue compreendêIa.Até os prisioneiros alemães, inclusive os políticos, na horado perigo tornaram a sentir os laços do sangue e da pátria. Oacontecimento novo (a derrota que se aproximava) reduziu atermos elementares o emaranhado de ódios e incompreensões etornou a dividir os dois campos: os políticos, junto com ostriângulos verdes e com os SS, viam, ou acreditavam ver, emcada um de nossos rostos o escárnio da desforra, a alegria máda vingança. Nisso eles se encontravam unidos e a sua ferocidadedobrou.Alemão nenhum podia esquecer que nós estávamos dooutro lado: do lado dos terríveis semeadores de morte que cruzavamos céus alemães como donos, por cima de qualquer barreira,dobravam o ferro vivo de suas obras, levando, cada dia,a matança até dentro das suas casas, das casas nunca antes violadasdo povo alemão.Quanto a nós, estávamos acabados demais para termosverdadeiro medo. Os poucos que ainda sabiam julgar e sentiracertadamente tiraram nova força e esperança dos bombardeios;os que a fome ainda não tinha levado à inércia definitiva aproveitaram,freqüentemente, os momentos de pânico para empreenderexpedições até as cozinhas e os depósitos - expediçõesduplamente arriscadas, já que, além do perig0 direto dasbombas, o furto cometido em condições de emergência era pu120nido com a forca. A maioria, porém, agüentou o novo perigoe o novo sofrimento com inalterada indiferença; não se tratavade resignação consciente e sim do torpor opaco dos animais decarga, domados à força de golpes, que já não sentem mais ador das pancadas.A nós ficava proibido o acesso aos abrigos blindados.Quando a terra começava a tremer, nos arrastávamos, aturdidose c1audicantes, através da fumaça cáustica da névoa artificialaté as áreas sórdidas e agrestes existentes dentro da cerca dafábrica; lá jazíamos inertes, amontoados como mortos; sensíveis,porém, à momentânea delícia do corpo em repouso. Comolhar apagado, observávamos as colunas de fogo e fumaça estouraremao redor de nós; nas pausas, ainda cheias do leve roncoameaçador dos aviões que cada europeu conhece bem, escolhíamos,no chão pisoteado, folhinhas de chicória e camomila eas mastigávamos lentamente, em silêncio.Terminado o alarme, daqui, de lá, retomávamos aos nossoslugares, infinito rebanho mudo acostumado à ira dos homens edas coisas e recomeçávamos esse nosso trabalho de sempre,odiado como sempre e já claramente inútil, sem sentido.Nesse mundo, cada dia sacudido mais profundamente pelosestremecimentos do fim próximo, entre novos terrores e esperançase intervalos de escravidão exacerbada, aconteceu-me encontrarLourenço.A histólÍa da minha ligação com Lourenço é, a um tempo,longa e breve, simples e enigmática; é a história de uma épocae de uma situação já canceladas de qualquer realidade atual eportanto creio que não será compreendida a não ser, talvez,como se compreendem as lendas e os tempos mais remotos.Em termos concretos, essa história restringe-se a bem pouco:um operário italiano me trouxe um pedaço de pão e osrestos das suas refeições, cada dia, durante seis meses; deu-mede presente uma camiseta cheia de remendos; escreveu por mimum cartão-postal à Itália e conseguiu resposta. Por tudo issonão pediu nem aceitou compensação alguma, porque ele erasimples e bom e não pensava que se deve fazer o bem a fimde receber algo em troca.121Tudo isso pode parecer pouco; não era. O meu episódionão foi o único; como já disse, vários entre nós lidavam comtrabalhadores externos e assim conseguiam sobreviver; eram,porém, relações diferentes. Nossos companheiros falavam delasda mesma maneira ambígua e cheia de subentendidos com -aqual os homens mundanos falam de suas relações femininas,ou seja, como de aventuras das quais a gente pode se orgulhare pelas quais deseja ser invejado, mas que, até para as consciênciasmais indiferentes, ficam no limite do lícito e do honesto,de modo que não seria correto nem conveniente falardisso com excessiva complacência. Do mesmo modo os Hiijtlin--ge falam de seus protetores e amigos de fora: com evidentereserva, sem nomeá-Ias para não comprometê-Ias e, principalmente,para não dar lugar a rivais indesejáveis. Os mais experimentados,os sedutores de profissão como Henri, nem piam;rodeiam seus sucessos com uma aura de ambíguo mistério, limitam-sea acenos, alusões calculadas de modo a suscitar nos ouvintesa lenda vaga e perturbadora de que eles gozam de favoresde "externos" extremamente poderosos e liberais. E isso, comuma finalidade específica: a fama de boá sorte (como já dissemos)resulta de utilidade essencial a quem sabe consegui-Ia.A fama de sedutor, de "organizado" suscita ao mesmotempo inveja, escárnio, desprezo e admiração. Quem deixa queo vejam comendo alimentos "organizados", conseguidos porfora, é julgado severamente: isso é grave falta de tato e reserva,além de evidente tolice. Seria igualmente tolo e indiscreto perguntar:- Quem te deu isso? Onde é que o achaste? Comoé que te arranjaste? - Só os "números grandes", bobos, inúteiseindefesos, que nada sabem das regras do Campo, podemfazer perguntas dessas, às quais nem se responde, ou se responde:Verschwinde, Mensch!, Hau'ab, Uciekaj, Schiess' in denWind, Va chier - ou seja, com uma das muitíssimas frases sinônimasde "Dê o fora!", das quais é rica a gíria do Campo.Existe também aquele que se especializa em complexas epacientes campanhas de espionagem para verificar quem é otrabalhador externo, ou o grupo de trabalhadores externos, aoqual recorre um Fulano, na esperança de tomar o lugar deste.Daí surgem intermináveis controvérsias de prioridade que re122sultam tanto mais amargas para o perdedor pelo fato que um"externo" já "trabalhado" resulta em geral mais rentável e principalmentemais seguro do que um "externo" em seu primeirocontato conosco. Ele é um "externo" que vale muito mais, porevidentes razões sentimentais e técnicas; já conhece o essencialda "organização", suas regras e seus riscos, e demonstrou estarem condições de superar a barreira da casta.. " Porque nós, para os de fora, somos os intocáveis. Ostrabalhadores externos, mais ou menos claramente e com todosos matizes entre o desprezo e a comiseração, acham que, sefomos condenados a esta nossa vida, se estamos reduzidos aesta condição, deve ser porque temos a mancha de alguma misteriosa,gravíssima culpa. Eles nos ouvem falando muitas línguasdiferentes que não compreendem e que lhes soam grotescas,como gritos de bichos; vêem-nos escravizados ignobilmente,sem cabelo, sem honra nem nome, a cada dia espancados,a cada dia mais abjetos, e nunca lêem em nosso olhar umaluz de revolta, de paz, ou de fé. Sabem que somos ladrões eindignos de confiança, sujos, esfarrapados, esfomeados, e, trocandoo efeito pela causa, julgam-nos merecedores da nossaabjeção. Quem poderia distinguir nossos rostos? Para eles,somos KazettY substantivo neutro singular.Obviamente, isso não impede que muitos deles nos joguem,de vez em quando, um pedaço de pão ou nos confiem (após adistribuição da "sopa para trabalhadores externos", na fábrica)as suas gamelas para raspar e devolver limpas. São levados aisso para não continuar sentindo sobre si algum importunoolhar faminto, ou por um momentâneo impulso de humanidade,Ou pela simples curiosidade de nos ver disputando um com ooutro o naco de comida como bichos, sem pudor, até que omais forte engula e os demais vão embora frustrados, claudicantes.Bem, entre Lourenço e eu não aconteceu nada disso. Nãosei se tem sentido tentar identificar as causas pelas quais a minha vida, só a minha entre milhares de vidas equivalentes, pôderesistir à prova; em todo caso, creio que devo justamente aLourenço o fato deesmr vivo hoje. E não só por sua ajuda material,mas por ter-me ele lembrado constantemente (com a suapresença, com esse seu jeito tão simples e fácil de ser bom) queainda existia um mundo justo, fora do nosso; algo, alguém aindap1,1roe Íntegro, não corrupto nem selvagem, alheio ao ódio e aomedo; algo difícil de definir, uma remota possibilidade de bempela qual valia a pena conservar-se.Os personagens destas páginas não são homens. A suahumanidade ficou sufocada, ou eles mesmos a sufocaram, soba ofensa padecida ou infligi da a outros. Os SS maus e brutos,os Kapos, os políticos, os criminosos, os "proeminentes" grandese pequenos, até os Râjtlinge indiscriminados e escravos,todos os degraus da hierarquia insensata determinada pelos alemãesestão, paradoxalmente, juntos numa Única Íntima desolação.Lourenço, não. Lourenço era um homem; sua humanidadeera pura, incontaminada, ele estava fora desse mundo de negação.Graças a Lourenço, não esqueci que eu também era um homem.


  11 Kazett vem de KZ (Konzentrations-Zentrum, Campo de Concentração)_ (N. do T.)  

É isto um homem?Where stories live. Discover now