O CANTO DE ULISSES

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  Éramos seis, raspando e pintando o' interior de uma cisternaenterrada no chão; a luz do dia chegava até nós só através daportinhola. Era um trabalho de luxo, ninguém nos controlava;só que estava frio, úmido; o pó da ferrugem irritava as nossaspálpebras e nos empostava a boca e a garganta num gosto comode sangue.Oscilou a escada de corda que pendia da portinhola:alguém vinha. Deutsch apagou o cigarro, Goldner acordou Sivadjan;todos recomeçamos a raspar energicamente a sonorapàrede de chapa.Não era o capataz, era apenas Jean, o Pikolo do nossoKommando. Jeanera um estudante alsaciano; apesar de seusvinte e quatro anos, era o mais jovem Haftling do KommandoQuímico. Tocara a ele, portanto, a função de Pikolo: de mandalete-escriturário,encarregado de limpar o barraco, entregaras ferramentas, lavar as gamelas, ter a contabilidade das horasde trabalho no Kommando.Jean falava corretamente francês e alemão. Ao reconhecermosseus sapatos no degrau mais alto da escadinha, paramostodos de raspar.- Also, Pikolo, was gibt es Neues? (E então, Pikolo,que há de novo?)- Qu'est-ce qu'i! .y a comme soupe aujourd'hui? (Quesopa tem hoje?)- ... qual é o humor do Kapo? E o negócio das vinte ecinco chicotadas em Stern? Como está o tempo lá fora? Leuo jornal? Que cheiro há na cozinha dos trabalhadores externos?Que horas são?111Jean era benquisto no Kommando. O cargo de Pikolo constituium degrau elevado na hierarquia dos "proeminentes"; oPikolo (que em geral não passa de dezessete anos) está isentodo trabalho braçal, tem livre acesso ao fundo do panelão dorancho, pode ficar o dia todo perto da estufa; portanto temdireito a meia ração suplementar, boas chances de tomar-seamigo e confidente do Kapo, do qual recebe oficialmente asroupas e os sapatos velhos. Bem, Jeanera um Pikolo excepcional.Era astucioso, robusto e, ao mesmo tempo, manso, amigável;embora levando, tenaz e valente, a sua secreta luta individualcontra o Campo e a morte, não deixava de entreter relaçõeshumanas com os companheiros menos afortunados; por outrolado, fora tão hábil e perseverante que conquistara a confiançade Alex, o Kapo.Alex cumprira todas as suas promessas. Mostrara-se umbruto violento e traiçoeiro, encouraçado de sólida e compactaignorância e estupidez, a não ser quanto ao seu faro e à suatécnica de algoz experimentado. Aproveitava cada ocasião parase proclamar orgulhoso de seu sangue alemão e de seu triânguloverde; exibia um arrogante desprezo para com seusquímicos esfarrapados e famintos: - lhr Doktoren! lhr lntelligenten!(Vocês doutores! Vocês inteligentes!) - debochavacada dia, ao ver-nos nos atropelando, estendendo as gamelas,na hora do rancho. Com os mestres externos era extremamentecondescendente e servil; com os SS mantinha relações de cordialamizade.Ficava claramente· acanhado diante do Registro do Kommandoe da relação diária dos trabalhos executados; foi este ocaminho que Pikoloencontrou para se tornar necessário. Umcaminho demorado, cauteloso e sutil, que o Kommando inteiroacompanhou ansiosamente durante um mês; por fim, a resistênciado ouriço foi vencida e Pikolo confirmado em seu cargo,com alívio de todos os interessados.Embora Jean não abusasse de sua posição, já tínhamosconstatado que uma palavra dele, pronunciada na entonaçãoe no momento certos, podia valer muito; ele já conseguira salvaralguns nós do chicote ou da demÍncia aos SS. Fazia uma semana112que Jean e eu nos tornáramos amigos: tínhamos descobertoessa amizade na ocasião excepcional de um alarme aéreo; logo,porém, apanhados pelo ritmo feroz do Campo, só tínhamostrocado algum aceno apressado, no banheiro ou no lavatório.Segurando-se com uma das mãos na escada oscilante, eleapontou para mim: - Aujourd'hui c'est Primo qui viendraavec moi chercher ia soupe (Hoje é Primo quem vai comigobuscar a sopa).Até o dia anterior tocara a Stern, o transilvano vesgo, masele caiu em desgraça por não sei que história de vassourasroubadas no galpão, e Pikolo conseguira apoiar minha candidaturacomo ajudante no Essenhoien, na função diária do rancho.Subiu de volta; eu fui atrás dele, piscando os olhos naolaridade do dia. O ar era tépido, o sol levantava da terra gordaum leve cheiro de tinta e de breu que me lembrava a praia eos barcos dos verões da minha infância. Pikolo me alcançouuma das alças do panelão e nos encaminhamos sob um clarocéu de junho.Fiz menção de agradecer; ele me interrompeu, não havianecessidade. Viam-se os Cárpatos nevados. Respirei o ar fresco,sentia-me estranham ente leve.- Tu es jou de marcher si vite. On a ie temps, tu sais(Estás louco ao andar com essa pressa. Temos tempo). O ranchosituava-se a um quilômetro de distância; logo, devia-seretomar com o panelão de cinqüenta quilos seguro nas alças.Um trabalho um tanto cansativo, mas que incluía uma caminhadaagradável na ida, sem levar carga, e a ocasião sempredesejada de se aproximar das cozinhas.Encurtamos o passo. Pikolo, esperto, escolhera o trajeto demaneira a darmos uma larga volta, caminhando ao menos umahora, sem despertar suspeitas. Falávamos de nossas casas, deEstrasburgo e de Turim, de nossas leituras, de nossos estudos.De nossas mães: como são parecidas todas as mães! Tambéma mãe dele repreendia-o por não saber nunca quanto dinheirolevava no bolso; também a mãe dele ficaria atônita se pudessesaber que seu filho conseguira se safar; que dia após dia aindase safava.113Passa um SS de bicicleta. É Rudi, o Chefe de Setor. Alto,continência, tirar o boné. - Sale brute, celui-là. Ein ganz gemeinerHund (Sujo bruto, esse. Cachorro vagabundo).- Para ti é indiferente falar francês ou alemão? - É.- Jean pode pensar em qualquer das duas línguas. Esteve ummês na Ligúria, gostou, gostaria de aprender italiano. Eu bempoderia lhe ensinar. Quer? Por que não? Vamos começar agoramesmo, qualquer coisa serve, o importante é não perder tempo,não desperdiçarmos esta hora.Passa Limentani, o romano, arrastando os pés, com umagamela escondida por baixo do casaco. Pikolo cuida, pega algumapalavra do nosso diálogo, repete-a rindo: - Zup-pa,cam-po, ac-qua.Passa Frankel, o espião. Vamos apressar o passo, nuncase sabe. Esse faz o mal só por fazer.. " O canto de Ulisses. Quem sabe como e por que veiomeà memória, mas não temos tempo para escolher, esta horajá não é mais uma hora. Se Jean é inteligente, vai compreender.Vai: hoje sinto-me capaz disso.Quem é Dante? Que é a Divina Comédia? Que sensaçãoestranha, nova, a gente experimenta ao tentar esclarecer, empoucas palavras, o que é a Divina Comédia. Como está organizadoo Inferno. O que é o "contrapeso", que liga a pena àculpa. Virgílio é a razão. Beatriz a Teologia.Jean ouve atento. Eu começo, lento, cuidadoso: 

É isto um homem?Where stories live. Discover now