Arco 1, Capítulo 1: Eu.

203 3 3
                                    


 ''Histórias só devem ser contadas para quem quiser mastigar e degustá-las lentamente. Para quem não tem medo de se identificar, se emocionar ou chorar. Histórias mal contadas são apenas para os mentirosos, infiéis e para quem deseja continuar no escuro''. Essa é a frase que eu mais escutei durante a minha infância, dita pelo meu avô e repassada pelo meu pai quando sentávamos na varanda da nossa casa no interior, escondida do mundo. Todo ano vamos para essa casa nas férias para fugirmos dos gritos incessantes da cidade grande, e termos o lazer das brisas marítimas, do sussurro da calmaria e o silêncio da paz. Era uma casa que só usávamos para passar dias festivos e feriados, a parte mais entediante era a limpeza que durava no mínimo dois dias por conta da casa ter dois andares, mas tirando isso era como um paraíso.

Era quase sempre frio, mas não um frio que corta a nossa pele e nos faz esconder por camadas de roupa, era um frio que beijava nossos rostos como em sonhos. O máximo de calor era o calor de um abraço, como um abraço reconfortante num dia cansativo. Melhor do que a casa, somente a companhia que eu tinha: meu pai e meu avô. Meu avô cresceu nessa casa, mas se mudou para a cidade em busca de seus sonhos e de um futuro melhor. É um senhor engraçado, sempre diz uma idade diferente para mim, para nunca revelar a sua verdadeira idade. É alto, olhos castanhos claros e calvo, por conta disso vive de boina. Sua barba branca é grande, bate na base de seu pescoço, ele diz que é pra compensar a falta de cabelo na cabeça. Mas meu pai mantém sua barba correta e certinha, porém apesar de não ser calvo, já tem fios de cabelo branco. É alto que nem meu avô, talvez por ser genético, mas ele odiaria ser calvo, porque não gosta de se sentir velho.

Era nosso quarto dia na casa e já tínhamos arrumado a casa, ou boa parte dela, nunca a arrumamos toda por preguiça. Mas hoje era dia de ir para a praia que fica atrás da casa, sempre percorríamos a trilha pela floresta andando e respirando o ar da natureza.

-Ei, vovô! Não vai me dizer que agora vamos precisar ir mais lento por sua causa, já está chegando no limite da idade?- Eu digo andando na frente dos dois, rindo um pouco. Eu e meu pai sempre encarnávamos no meu avô por ele ser velho.

-Humf, eu estou apenas com uma dor de cabeça e é só isso, moleque. Nunca que eu perderia pra umas crianças feito vocês dois!- Ele diz acelerando o passo.

-Gripe, cansaço, dor de cabeça... Sempre uma desculpa diferente. Qual o motivo da sua dor de cabeça?

-Ter que aguentar uma criança que pensa que é adulta. -Diz meu avô com um sorriso travesso, como quando uma criança pensa estar com a resposta para tudo na palma da mão.

Meu pai ri da patada que eu tomei, enquanto eu tento formular uma resposta rápida, eu o olho e logo o vejo sério novamente olhando para o horizonte, estávamos chegando na praia, mas seu olhar estava além da praia. Seus olhos castanhos refletiam as luzes da praia, e de alguém cheio de lembranças, esse olhar era frequente nesse ano. Meu avô, percebendo como sempre, puxa seu olhar de volta para o nosso lado.

-Meu filho, como anda seu projeto?

Meu avô foi esperto, se tem algo que meu pai gosta mais que tudo são suas escrituras, seus projetos e seu jeito de tentar recomeçar sua vida. Meu avô era observador como um gavião, e nada passava do seu olhar. Como se com um olhar ele interpretasse seus sentimentos e o seu jeito, o seu olho já tinha vivenciado todas as cores e formas de sentimentos que há.

-Ah pai, está indo... Dei uma pausa por um tempo, me sinto meio improdutivo esses tempos. A cidade, barulho, não sei. É como se meu corpo só andasse e trabalhasse, mas não refletisse. -Seu olhar ainda estava mirado no horizonte, coçando sua barba e todas as palavras soaram como um suspiro de alguém cansado.

Histórias Jogadas ao Vento.Where stories live. Discover now