Oito Dias Antes

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" Ele me chamou para sair no domingo e eu não tinha ideia do que responder. Estava anestesiada da festa e da ótima companhia, mas não sabia como agir, eu nunca tinha saído com um garoto antes, nunca permiti que eles se aproximassem. Aceitei, ele disse que levaria a uma sorveteria à tarde e pediu meu endereço para me buscar.

- Olá querida - Papai me cumprimentou quando me juntei a eles para o almoço de domingo, uma tradição de família que, as vezes, tinha o Rodrigo.

- Olá maravilhosos - dou um beijo no rosto dele e um no da mamãe.

- Estamos felizes hoje - Mamãe comenta, rindo.

- Estamos - o meu sorriso ridículo é impossível de esconder. - Ah, eu vou sair mais tarde, tudo bem?

- Devemos perguntar onde vai?

- Em uma sorveteria, com um amigo do Rodrigo - dou de ombros, como se não fosse nada importante.

- Amigo? Do sexo masculino? - Papai me pergunta, mas parece feliz.

- Sim, do sexo masculino - reviro os olhos.

- Me dá o nome completo desse menino, quero verificar os antecedentes criminais - Mamãe e eu gargalhamos e ele completa - Não entendi o motivo da graça.

- Fica tranquilo - dou mais um beijo em seu rosto - eu só vou até a sorveteria e vocês dois vivem dizendo que eu devo sair mais de casa.

- Que tal amigas? Do sexo feminino?

- Deixa a menina, ela não é mais criança - Mamãe dá uma bronca nele, o que me faz rir. É bom ver sua família feliz simplesmente porque você vai sair de casa.

Eu coloquei um shorts, camiseta e tênis e vi que tinha acertado quando ele chegou de bermuda, camiseta e sapa tênis. Ele sorria, feliz. Papai o olho de cima a baixo e soltou um leve - otário - que nos fez rir. Ele abriu a porta do carro para mim e me deixou escolher as músicas, o que foi fofo da parte dele.

- Você está linda - Ele comenta, segurando minha mão, quando descemos do carro.

- Obrigada - sinto o rosto corar - você também não está nada mal.

- Também achei que não estava nada mal - ele ri.

Descubro que o sorvete preferido dele é o mesmo que o meu, que eu gosto das mesmas musicas que ele, mas que ele não gosta das mesmas musicas que eu, que eu sou apaixonada por cultura e ele, por cultura inútil.  Nossa sorveteria se estende em um cinema, ele passa a sessão toda com a mão na minha e eu não digo nada, mas também não tiro.

Nós conversamos toda a volta para casa e gostei mais um pouco dele quando ele não tentou me beijar. Apenas sorriu e beijou meu rosto, dizendo que não via a hora de repetirmos a dose. Não preciso nem dizer que eu entrei em casa nas nuvens né? "

O Guilherme me encara, os olhos focados, um bloco de papel cheio de anotações e uma caneta nas mãos. O médico voltou com força total e duvido que ele vá embora. A tatuagem do pulso está coberta por uma bela pulseira de couro.

- Muito bem - ele suspira - acho que estamos fazendo um bom progresso. Estou orgulhoso de você - a voz dele é seria demais e me machuca. - Você gostaria de continuar ou chega por hoje?

- Eu acho que posso continuar - eu digo, mecânica.

- Tudo bem, vamos lá - ele desce os olhos para o bloco de anotações.

" nós conversamos a noite inteira e o dia seguinte inteiro, até chegarmos à faculdade, onde ficamos juntos todo o tempo fora de aula. Ele fazia o mesmo curso que o Rodrigo, então não tínhamos nenhuma aula juntos. Uma estudante de letras e um de economia, na faculdade era comum este tipo de intercâmbio, mas não estávamos juntos, só éramos amigos.

Era comum uma boa parte dos alunos beberem em uma rua próxima a faculdade nas sextas feiras, mas eu nunca tinha ido. Um dia ele me chamou para ir com ele, veja bem, eu não bebia, detestava e ainda detesto multidões, mas aceitei, desde que ele me buscasse na faculdade, eu não iria até lá sozinha.

Ele foi meu buscar com um amigo, eu estava com o Rô. Nós fomos para lá e minha primeira impressão do lugar foi horrível, quem fica naquela muvuca por opção?! Sinceramente, eu estava chocada, mas eu tinha dito que ia, lá estava eu.

Eu me dei bem com os amigos dele, pois eles estavam jogando baralho e eu adoro baralho. Joguei com eles, enquanto ele ficava meio de lado, conversando com outras pessoas. Estava um dia frio, ele estava com uma blusa de frio verde, que ficava muito bem nele. Ele me olhou algumas vezes e eu olhei outras tantas para ele, mas sem nenhum dos dois realmente se mexer.

Eu resolvi que eu podia vencer a timidez dele e reclamei que ele estava muito longe. Ele me respondeu que não tinha lugar para ele onde eu estava, por isso levantei e me juntei a ele, que pareceu surpreso por eu ter feito isso.  Nós conversamos um pouco, mas com as pessoas que estavam ao nosso redor, depois acabamos nos afastamos e ele me abraçou.

Minha cabeça deu um nozinho, nós estávamos ali, juntos, sozinhos, abraçados, se não rolasse ali, não ia rolar mais. Quando ele tentou a primeira vez, eu virei o rosto e admito que me diverti com a expressão dele. Continuamos abraçados e ele tentou novamente, mas eu desviei de novo. Aquilo estava ficando divertido.

Quando ele tentou a terceira vez, eu dava gargalhadas internamente. Ele era lindo, não devia estar acostumado a mulheres que não fazem exatamente o que ele quer. Nós nos sentamos do lado um do outro, perto das pessoas novamente e por algum motivo que não me lembro agora, eu disse que ele parecia uma menina.

Ele virou o rosto para me encarar e então eu o beijei, o pegando totalmente de surpresa. Como descrever o nosso beijo? Algumas pessoas diriam que encaixou, mas, dizer isso, não me parece o suficiente. Foi como sair de casa depois de dias de cama como uma gripe muito forte, foi libertador. Eu pude sentir cada um dos casulos se quebrando e as borboletas nascendo no meu estômago e foi maravilhoso.

O sorriso dele quando nos separamos dizia que ele também tinha gostado. A atitude dele, de me tirar de perto de todos e me beijar durante o que podiam ser minutos, horas, meses ou até mesmo anos ( o que eu acho mais provável), foi uma das coisas mais gostosas que eu já senti.  Ele era carinhoso, mas urgente. Ele me abraça ao mesmo tempo que controlava as mãos e me senti feliz de estar nos braços dele, feliz de verdade, sem medo"

Estou respirando fundo, as lágrimas ameaçando rolar, ele apenas me encara.

- Acho que chega por hoje - digo, entre os dentes, fazendo todo o esforço do mundo para não chorar.

- Acho que você deve evitar pensar nisso quando não estiver falando sobre o assunto comigo. Quando ocorre um grande trauma, as reações às lembranças podem ser imprevisíveis.

- Sim senhor - respondo ríspida e penso ver uma sombra de dor nos olhos dele, mas não tenho certeza.

- Como você reagiu ao remédio que eu troquei?

- O senhor deve saber que eu não durmo muito bem, independente do remédio. Mas não fez mal, se é isso que quer saber.

- Muito bem, qualquer reação me avisa, por favor. - Há preocupação nos olhos dele, mas faço o possível para acreditar que é profissional.

- Pode deixar, passar bem Doutor Guilherme.

Me levanto e saio, sem esperar despedidas. Nós éramos amigos até pouco tempo, pelo menos era o que ele dizia, o que mudou?

Não tenho vontade de ir ao teclado hoje, então passo na biblioteca depois do almoço e procuro um romance que eu já conheço. É melhor saber o final da história, sem ser surpreendido.

Me EsperaWhere stories live. Discover now