Regressarei através do rio

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Cualli subia lentamente a colina que dava acesso ao cemitério. O lusco-fusco característico do crepúsculo do final do dia tornava o caminho ainda mais difícil. A rapariga avançava cautelosamente, com receio de enfiar o pé nalgum buraco. A jornada, ao sabor do pôr-do-Sol, era complicada, mas mais angustiante ainda deveria ser a caminhada que a sua irmã mais velha enveredava pelo mundo dos mortos.

O céu era irradiado por cores alegres. Tons alaranjados, como as pétalas das delicadas cempasúchils que transportava no cesto, tingiam as nuvens suaves. Dizia-se que o colorido vibrante das flores e o seu cheiro agradável amenizavam a árdua jornada dos defuntos pelos desafios de Mictlán.

Nove níveis eram apresentados às almas que dos seus corpos gradualmente se desprendiam. A vida que haviam levado, a bondade praticada no mundo dos vivos, determinariam o sucesso da penosa passagem rumo ao descanso eterno. As colinas convergiam, esmagando impiedosamente tudo o que no meio se encontrasse, os ventos cortantes abriam feridas na pele, as serpentes e os jaguares perseguiam incansavelmente toda a matéria meia morta, meia viva. A libertação da alma, o último estágio de tão fatigante caminhada, permitia o acesso ao submundo paradisíaco onde repousavam os espíritos dos justos e dos corretos.

Cualli sempre ouvira os mais velhos salientar a importância de se manter uma ligação com os familiares já falecidos. As oferendas e as visitas aos túmulos sossegavam as pobres vidas perdidas no mundo onde a Morte reinava e contribuíam para o sucesso da fatigante viagem.

Tlalana morrera inesperadamente, para espanto de todos. Se tivesse sido vítima de uma das inesperadas cheias que transformavam a aldeia num autêntico rio, ou se tivesse tido o feliz azar de ser atingida por um raio, decerto que receberia a misericórdia de Tlaloc, o Deus da Chuva. Afortunadas eram as almas que tinham estas tristes mortes! Nada de quatro demorosos anos de desafios em Mictlán. Passagem direta para Tlalocan, o próprio paraíso da Morte construído pela divindade das gotas que das nuvens descem em direção à terra. O mesmo se podia dizer dos guerreiros que lutavam nas brigas entre povos e das guerreiras que perdia a batalha contra o findar da Vida no momento em que traziam novos seres ao mundo. O seu destino traçava-se na escolta do Sol durante o seu levantar, para os primeiros, e no acompanhamento deste mesmo astro luminoso aquando da sua visita noturna ao submundo, para as segundas. Até as coitadas das crianças que viam no momento do seu nascimento o instante final da sua passagem pelo mundo dos vivos tinham um além-vida específico. Chichihuacauhco, a árvore amamentadora, acolhia-os, como uma boa mãe protege com carinho os seus filhos.

Seguia os passos de Cualli Caxtilhuiayetl, o Techichi de pelo castanho-avermelhado da família. Rezavam as lendas que os cães daquela raça de porte pequeno e grandes orelhas pontiagudas arrebitadas, antepassados dos Chihuahuas, eram divindades que haviam descido do Reino do Sol para habitar o mundo dos humanos, com a missão de os proteger dos seus próprios futuros. Que assim o fossem. Os seus semelhantes de quatro patas, embora despidos de qualquer casaco peludo, também possuíam uma tarefa muito especial no reino dos mortais. Os Xoloitzcuintles, enviados do psicopompo Xólotl, haviam sido incumbidos de proteger os humanos nesta e na outra vida. Talvez fosse essa a explicação da partida súbita de Tlacatini logo a seguir à morte da sua protegida, Tlalana.

A rapariga de longos cabelos escorridos, soltos, só cessou a sua marcha cuidadosa quando se deparou com a campa da irmã. Num movimento de respeito, ajoelhou-se perante o túmulo. Fechou as cortinas oculares e murmurou qualquer coisa. O Techichi imitou a sua dona, sentando-se muito direito, enquanto Cualli fazia as suas preces e acendia uma vela.

- Aqui estás tu, mi corazón. Procurei-te por toda a aldeia.

Uma figura feminina jovem, com uma certa expressão de alívio, aproximara-se silenciosamente.

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