Prologo

57 7 3
                                    

Esta é uma ficção, mas se você me perguntar sobre Joe, eu iria te dizer que ela sou eu, é parte de mim, é a personagem que vive em minha mente desde os treze anos. 

Condenada 

Aquele foi de longe o pior dia da minha vida. Somando-se ao que veio depois provavelmente se tornou o pior mês que já vivi. O mais cruel de tudo não foi a violência em si, mas foi ver a reação das pessoas diante do que havia acontecido. Eu havia sofrido um estupro, e estava sendo tratada como culpada ao invés de vítima. Talvez, isso tenha acontecido porque preferi encarar tudo de cabeça erguida. De que adiantaria o desespero e a comiseração comigo mesma? De nada, é o que eu lhes digo. Contudo, essa minha reação transformou-me em uma pária, uma mentirosa e uma insensível. Tudo que me restou foi seguir em frente. 

Hoje, anos depois me pergunto porque não reagi, o que me fez ficar ali passiva diante da situação? É claro, tinha um canivete em meu pescoço, o que eu poderia fazer? Ah, Me lembrei! Eu estava bêbada e drogada, tinha acabado de brigar com meu pretenso "namorado" e resolvi que era uma boa ideia sair de uma festa sozinha. 

Fui atacada não muito longe da festa que acabara de deixar, estava entorpecida e não consegui me defender, na verdade acredito que nem tentei, eu prezava pela minha vida e uma ameaça de morte tinha sido suficiente para me paralisar.Eu descia a rua decidida a ir para longe da festa, não era possível que Thomas pudesse ter sido tão idiota, achei que tínhamos algo, mas só conseguia pensar que ele não valia muita coisa. Distraída só percebi a aproximação do meu violentador tarde demais, já não tinha para onde correr. Com um canivete ele fez um leve corte abaixo do meu pescoço e disse que se eu gritasse ou fizesse qualquer coisa ele me mataria. Eu fiquei ali, eu me deixei violentar, eu acreditei, assim como todos os outros, que era a única culpada por aquilo. 

Eu apenas me desliguei, esperei que tudo terminasse para que pudesse sair dali. Sem a parte de baixo das roupas, eu temi pelo que pudesse me acontecer, tentei pedir ajuda escondida mas ninguém me ajudou. Então quando me senti segura o suficiente para me levantar do lugar e correr eu o fiz. Fui para o local mais próximo em que poderia achar ajuda. O resto da noite foi um borrão. Delegacia, reconhecimento do local, Hospital. Em choque me lembro de me dar conta que a única pessoa que eu queria ao meu lado era aquela que eu havia deixado para trás. Eu e Thomas tínhamos discutido, mas a essa altura do campeonato nem me lembro mais qual era o motivo, apenas peguei o telefone e liguei. 

Preciso de você - disse em meio as lágrimas - me desculpa. 

Como era de se esperar em poucos minutos ele chegava ali, saltando da moto como se  pudesse matar alguém, não sei bem o que ele estava pensando no momento, mas quando me viu não disse nada, apenas me abraçou. "Vai ficar tudo bem gata, eu estou aqui." Quando ele me disse essas palavras nenhum de nós dois sabia que eu já tinha sido condenada.

Passamos aquela noite juntos no hospital. A polícia apareceu ali para pegar mais algumas informações. Foi a primeira vez que percebi a acusação em seus olhos, algo estava errado, e pela forma como olhavam para Thomas eu o havia metido em encrenca também.

É óbvio, que meus exames dariam detalhes do que eu havia bebido e usado, eu não tinha esperanças de me livrar disso. O que eu não esperava era que constasse ali resquícios de sêmen feminino. Depois da violência em si aquele com certeza foi o momento mais humilhante de todos. De alguma forma, em minha cabeça, aquilo dizia a todos que não estavam lá que eu havia gostado do que tinha acontecido. Foi nesse momento que decidi que ninguém além de quem esteve comigo aquela noite deveria saber do que aconteceu. Não contaria aos meus pais, mesmo não sabendo como explicar o fato de que tinha chegado em casa com uma roupa diferente da que eu havia saído. Não saberia suportar a acusação em seus olhos. Já era humilhante demais ver isso nos olhos de desconhecidos.

Depois de todo aquele processo, de ser medicada e interrogada Thomas me levou para casa, ficamos um tempo em frente a minha casa conversando, não falamos muito sobre o que aconteceu, ele parecia perceber que eu não estava pronta para isso. A verdade é que eu nunca me senti pronta, não até hoje. Acredito que esse foi o motivo de recusar a assistência de um psicólogo, mesmo que hoje acredito que foi a coisa mais idiota que fiz durante aqueles dias.

Os dias que se se seguiram passei por mais alguns exames. Quando achei que estava livre de tudo aquilo e podia seguir em frente, recebo uma intimação da delegacia da mulher em casa. Eu teria que falar sobre tudo novamente. Cumpri aquele compromisso da mesma forma que tinha feito todo o resto, sem desmoronar. Eu já havia me distanciado daquele dia, trancado a humilhação em uma gaveta que estaria sendo aberta pela última vez, ao menos era isso que eu queria acreditar.

Entrei naquele prédio me sentindo oprimida, mas disposta a ajudar no que eu pudesse. Me informaram que iriam mostrar-me algumas fotos e que eu deveria apontar o suspeito. Aquilo me assustou um pouco, como já disse eu não estava em sã consciência quando aconteceu. Eu não conseguia lembrar-me da fisionomia do atacante. O que eu sabia era que ele era negro, magro, não muito alto e que seus olhos estavam arregalados, o que mostrava que ele provavelmente andara se drogando antes de me abordar.

Foram horas olhando cada criminoso que já fora acusado de algo na cidade e que apresentava as características que lhes dei. Todos muito parecidos entre si, alguns eu tinha certeza que não eram, outros eu tinha dúvida, diante da minha indecisão a sensação de que eu não estava sendo vista como vítima, mas que estava ali para ser analisada só aumentava. O que me confirmou isso foi a forma como fui tratada, todos estavam indiferentes a mim e ao que eu tinha passado, o sentimento era de escárnio.

Incapaz de reconhecer meu atacante sem qualquer dúvida, eu não acusei ninguém. Como poderia? Será que eu deveria mesmo apontar qualquer um daqueles 7 indivíduos que se pareciam com ele? Sério mesmo que eu poderia acusar um inocente? Não sei muito bem como funciona esse tipo de investigação, mas eu não queria colocar na berlinda alguém que eu não tinha certeza se era mesmo quem deveria estar.

Sai dali com a certeza de que me acusavam no lugar do meu atacante. Dias depois ouvi um boato entre meus amigos. Sim, eu não contei para ninguém, mas em uma cidade pequena as notícias correm, mesmo que você tente contê-las e geralmente elas são uma versão totalmente errada da verdade. A história que corria entre meu grupo de amigos era que quem havia feito aquilo comigo tinha sido Thomas. Aquilo foi o fim para nós!

Desde o ocorrido já havíamos nos distanciado, em algum momento entre aquela noite em frente ao meu portão chegamos a um acordo silencioso que era hora de cada um seguir seu caminho. Era como se ele me devolvesse a resposta daquela ligação, seus olhos me diziam que eu estava sozinha e que ele não poderia ajudar. Mesmo assim eu queria defendê-lo, dizer para todos que ele não tinha nada com aquilo, mas a verdade é que eu fui uma covarde. Não conseguia mais falar sobre aquilo, não queria que falassem sobre, mas não tinha coragem de fazê-los parar. Depois disso parei de olhar nos olhos das pessoas, eu não conseguiria ver a acusação de que tudo tinha sido uma mentira minha, como disse não era fácil quando isso vinha de estranhos, mais difícil ainda era quando quem te acusava eram aqueles que te chamavam de amigo. Meu nome é Joe e eu não precisava de mais para saber que tinha sido condenada sem julgamento. (continua...)

CondenadaWhere stories live. Discover now