Os dias se passavam mais devagar. Em duas semanas, eu tinha me acostumado com minha vida normal de novo e, agora que tinha voltado para a Clínica, parecia mais difícil aderir às exigências do tratamento. Eram horários demais e tarefas demais e, mesmo que eu soubesse que aquilo fosse para meu próprio bem, às vezes me davam vontade de desistir. Não sabia o que tinha de diferente dessa vez. Talvez fosse pelo fato de que, agora que eu tinha a força de vontade de querer mudar e a ansiedade de querer sair dali logo, os pontos do relógio se passavam mais devagar.
Wilmer me parecia mais sereno a cada vez que vinha me visitar; acho que os últimos acontecimentos o tinham conformado de que, no fim das contas, meu lugar era ali por enquanto. Eu percebia isso quando ele pegava na minha mão e me pedia para passear com ele pelas redondezas da clínica.
Ele não queria mais ficar sentado conversando, como sempre fazíamos; talvez ele tenha percebido que conversar só nos levava em direção às brigas. Apesar de não podermos ficar sozinhos quando ele me visitava, ter Barbra por perto era o mais perto que chegávamos disso. Ele agora entendia tudo da minha relação com ela e, sempre que chegava, procurava pela menina para dirigi-lo aonde eu estava. Não sei se era pela sensação de que eu já a conhecia, mas com ela as coisas eram mais simples de se entender. Ela era capaz de me convencer a fazer qualquer atividade, desde ir para minhas sessões com a psiquiatra (que, durante um longo tempo, era uma luta para que eu fosse; não queria me abrir com ninguém senão com a qual eu já estava acostumada) até arrumar a própria cama.
Dessa vez, minha família não viera me visitar; então, para minha felicidade, minha tarde inteira tinha se resumido apenas a caminhar com ele ao meu lado. Depois entendi que o gramado pelo qual estávamos andando era, de fato, o qual eu sempre estava com a minha outra eu e com ele nos meus sonhos.
— Eu sempre sonho com esse lugar — eu penso alto, e ele desvia o olhar para mim. Gosto de vê-lo assim, com uma mão no bolso, os músculos relaxados e a outra que me segurava sem estar suando toda hora.
— Sério? — Eu afirmo com a cabeça, e ele continua. — Eu estou nele também?
— Arrã. — Um sorriso surge em seu rosto, mas, um segundo depois, ele rapidamente se desfaz. — O que foi? — Eu pergunto ao ver sua expressão preocupada para mim.
— É um sonho bom ou ruim?
— Sério Wilmer? Você está nele, como pode ser um sonho ruim? — Tento disfarçar, mas a minha voz subitamente fina não parece convencê-lo.
— Demi. Seja honesta comigo. É um sonho bom ou ruim?
— Por que você está me perguntando isso?
— Só... Só me responda, está bem? — Ele parou de andar e virou o rosto para mim. Um clima estava se formando ali e por um momento tive vontade de correr para os braços de Barbra, que estava bem atrás de nós. Por que ela não nos interviu ainda?
Eu olho para trás e ela me lança um olhar de incentivo. Ela sabia dos meus sonhos pois, toda vez que minha psiquiatra chegava para a sessão do dia, Barbra fazia questão de acompanhar de longe. Se era superproteção ou curiosidade, eu nunca soube.
— São... — Respiro fundo e olho para baixo, apertando ainda mais sua mão, um gesto que eu sempre fazia quando me sentia insegura. — Confusos. Nunca sei se são bons ou não. No começo eram bons, você estava sempre ao meu lado, mas aí... — Eu me obriguei a calar a boca para não falar mais do que devia. Ele não precisava saber que sua namorada estava ficando completamente louca sonhando com ela mesma em uma versão mais jovem.
— Ei. Não faça isso.
— Isso o quê? — Desvio o olhar do chão, mas apenas para olha a paisagem verde e tranquila que nos rodeava.
— Se calar antes de terminar a frase. Vamos, fale para mim. — Ele me força a olhar em seus olhos puxando meu rosto pelo queixo, e posso ver que ele está apreensivo.
— Sr. Valderrama. — A voz de Barbra soou atrás de nós de repente, e nós dois viramos para vê-la de braços cruzados. Ela olhava cautelosa para meu namorado, como se quisesse impedi-lo de fazer alguma coisa errada. — Posso conversar com você um instante?
— Mas eu estou falando com ela, não pode esperar um-
— Wilmer. Por favor. — Sua voz continuou no mesmo tom profissional e, apesar de tê-lo chamado pelo nome dessa vez, talvez tenha sido por isso que ele largou minha mão e me deixou para falar com ela. Barbra andou até uma distância ainda possível que eu pudesse vê-la, mas não ouvi-la.
Mordi meu lábio inferior ao ver Wilmer de braços cruzados e a expressão rígida enquanto Barbra lhe dizia alguma coisa que eu não conseguia ouvir. Tive medo que fosse sobre meus sonhos malucos. Então ele aos poucos suavizou a expressão e colocou as mãos nos bolsos de novo, enquanto ela colocava a mão no seu ombro em um gesto tranquilizador. Ela continuava conversando com ele e houve um momento que ele ficou encarando o chão, de cabeça baixa, o que me deixou ainda mais curiosa.
Depois de alguns minutos eles finalmente voltaram, Wilmer com a serenidade no rosto de novo e sei que isso deveria ter me confortado, no entanto, só fiquei mais apreensiva.
Ele me deu a mão de novo e eu aceitei. Continuamos caminhando, dessa vez de volta para os interiores da Clínica e, depois de um silêncio extremamente irritante entre nós, ele começou a falar de sua família.
Wilmer tinha viajado para a Venezuela junto com a família para passar o ano novo naquele ano. Originalmente ele tinha pago passagens para dois, uma para ele e outra, para mim (mesmo que eu tivesse insistido em querer pagá-lo, ele não aceitou); mas, devido às circunstâncias, ele teve de ir sozinho. Falou que todos perguntaram por mim e, sem escolha, teve de falar a verdade. Meu coração se encolheu no meu peito quando soube do quão triste sua mãe tinha ficado ao saber do acontecido e desejei ter estado lá para abraçá-la.
Seu pai, é claro, ficou sonhando acordado com os netos que teoricamente nós os daríamos, reclamando que já estava na hora, que já fazia muito tempo que namorávamos e que no seu lugar ele já tinha se casado comigo e que ele não deveria perder tempo com "una hermosa reina como éste". Ele imitava os dizeres de seu pai com um espanhol carregado e isso me fazia rir, e ele olhava de canto de olho para mim orgulhoso de si enquanto se empolgava. Seus olhos brilhavam enquanto falava da estadia com a família no ano novo e seu sotaque forte de latino fazia com que eu sentisse que tudo estava perfeito de novo - apesar de também saber que essa sensação toda acabaria tão logo ele fosse embora.
Wilmer não tocou mais no assunto do sonho, e isso me preocupou.
— Você vem me ver semana que vem, não é? — Eu perguntei com voz apelativa, fazendo beicinho. Minhas mãos estavam segurando as dele e ele me puxa para perto, roubando um beijo. O gosto do café que ele sempre tomava na recepção antes de entrar no interior da Clínica ainda era forte em sua boca e eu me deliciei com isso o máximo que pude.
— Claro. Por que está perguntando isso?
— Sei lá. — Menti, fingindo dar de ombros. Ele não precisa saber que, apesar dos últimos dias do ano passado, ainda me sentia (muito) insegura em relação a nós. Sabia que aquela insegurança sempre estaria ali, porque fazia parte da minha personalidade confusa e ambígua e ele também o sabia, mas a ideia de dizê-lo isso mais uma vez me dava a sensação de que ele estaria a um passo mais perto de desistir de nós.
— Isso não tem nada a ver com os seus sonhos, tem?
— Claro que não — menti de novo, revirando os olhos. Na verdade, os sonhos tinham me deixado mais insegura ainda sobre o nosso futuro. Por outro lado, eu me reprovava por pensar assim. Sonhos são apenas sonhos, certo? Não é como se tudo que a gente sonha virasse verdade. — Você anda muito preocupado com o que eu sonho.
— Só estou me certificando de que você está bem.
— E vai conseguir isso controlando meus sonhos? — Eu indaguei, arqueando uma sobrancelha. Sabendo que aquilo iniciaria uma discussão (e que eu já estava cansada de discussões), eu o interrompo com um beijo no mesmo momento que ele abre a boca e se prepara para retrucar. Pego seu rosto nas minhas duas mãos, o puxando para mais perto e eu sei que vou sofrer as consequências mais tarde, mas não ligo. Seu rosto era áspero por conta da barba recém-feita e os lábios tinham mais gosto de preocupação do que de café dessa vez. — Relaxe, bebê. Eu estou bem.
Apesar de eu tentar confortá-lo com mais uma mentira (que eu torcia para que virasse verdade um dia), percebo que Wilmer não se convence, porque suas linhas de expressão na testa não se desfazem. Fazia muito tempo desde quando eu o vira preocupado assim pela última vez e isso me amedronta; imagine, então, se ele descobrisse que eu estava escondendo verdades dele outra vez: ele ficaria louco, eu tinha certeza; ele não suportava que mentisse para ele quando estávamos bem e não ia ser agora que isso iria mudar.
— Will, você quer me dizer alguma coisa?
— Como eu posso te dizer, se quando eu abro a boca para falar você me cala com um beijo?
— Desculpa, é que eu.... Eu tenho medo do que você vai dizer. — Apesar de essa não ser toda a verdade, fico feliz comigo mesma por reconhecer que aquilo já era um grande passo para mim. Menos uma inverdade para a coleção; agora, era uma meia verdade. — Tenho medo de que fique preocupado comigo por causa disso e de que Barbra tenha lhe contado tudo, porque eu sei que é meio confuso, mas acho que no fundo esses meus sonhos querem dizer alguma coisa.
— Então você mentiu para mim quando disse que estava bem. Porque isso não me parece com uma pessoa que está bem. — Ele cruza os braços e sua postura de durão está de volta. Droga.
— Foi. — Eu encaro o chão, morta de vergonha. — Mas pelo menos-
— Você sabe que isso me magoa. — Sei que não era sua intenção, mas seu tom de magoado me deu a sensação de cair em um poço sem fundo.
— Wilmer, eu fui honesta com você! — Eu jogo as mãos para o alto, desesperada tentando juntar as peças do que com certeza é uma parte do seu coração, que está partido. — Será que isso não basta? Entenda que eu estou tentando, eu realmente estou! Mas não vou conseguir toda vez, isso é uma batalha diária. E é por isso que estou aqui e também é por isso que eu preciso da sua ajuda e de todo mundo ao meu redor. Quer me ajudar? Então me compreenda. Compreenda que eu não quero mais brigar, mas ao mesmo tempo eu não quero te magoar ou te deixar preocupado e compreenda que, se nós quisermos que isso dê certo, temos que parar de ficar interrompendo o outro. — Ele bufou e sorriu sarcástico. — Eu sei que soa engraçado vindo de mim, mas eu também vou tentar. É sério.
— Você não devia estar me lembrando dessas coisas. Eu deveria saber de tudo isso. — Ele agora parecia brigar consigo mesmo, e eu coloco suas mãos na minha cintura; uma desculpa para chegar perto dele de novo.
— Não se culpe. Você não tinha obrigação de namorar alguém tão problemático — Wilmer revira os olhos com meu comentário, mas me beija mesmo assim e eu sinto que não há mais aqueles verdadeiros icebergs entre nós quando estamos prestes a iniciar uma briga. Seus lábios são acolhedores e ainda familiares; beijá-lo era uma ação tão comum para mim como escrever, ou até mesmo respirar. Ouvimos Barbra pigarrear quando ele me prende com os braços pela cintura, e isso o faz com que se afaste de mim na mesma hora (para minha infelicidade).
— Desculpe. Eu tinha que fazer alguma coisa para impedi-la de continuar falando besteira — ela ri balançando a cabeça, e, sem dizer nada, encaminha Wilmer para fora do quarto (e da Clínica, presumo).
Tive vontade de perguntar à Barbra o que ela tinha conversado com ele, mas algo me dizia que, mesmo que eu lhe pedisse de joelhos, ela não cederia.
Me senti estranha com o fato de não termos brigado dessa vez. Mais estranho ainda é essa vontade repentina que me deu de lhe contar tudo, porque, em outras épocas, eu teria guardado tudo para mim e descontado no meu corpo no fim do dia.
Mesmo assim, o que ela tinha dito a ele que o deixara tão apreensivo a ponto de nem mais tocar no assunto?