O Alvorecer de Earis

By soukevem

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Alô, queridos O que você faria se fosse parar em um planeta totalmente desconhecido? Enquanto investigam o mi... More

Prefácio
Prólogo
- 1.Retalhos -
- 2.Amizades -
- 3.Aconchego -
- 4.Desabafos -
- 5.Memórias -
- 6.Irritação -
- 8.Ansiedade -
- 9.Dúvidas -
- 10.Timbres -
- 11.Embrulhos -
- 12.Anotações -
- 13.Cicatriz -
- 14.Impactos -
- 15.Preocupações -
Nota do autor e algumas divagações
- 16.Despertar -
- 17.Compromisso -

- 7.Sombras -

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By soukevem

À noite, depois do trabalho, Clarisse estava indo buscar o irmão na casa de Cecília, como de costume. Foi um dia estressante e ela ainda refletia sobre aquele desenho de August e sobre o assalto enquanto dirigia pela Avenida 23 de Maio. O trânsito era infernal e, distraída em pensamentos como estava, não reparou que comia a faixa. Como resultado, um motoqueiro quebrou o retrovisor do seu Celta vermelho desbotado e não parou para se retratar.

Possessa de raiva, estacionou na rua de sua avó e desceu do carro para ver o que restou do retrovisor, respirando fundo e olhando na internet quanto custa comprar um novo.

Pela janela, a matriarca a viu na calçada e percebeu de imediato a nuvem de fúria que pairava sobre sua neta. Indo à cozinha, pegou uma xícara de café fresquinho e foi para fora, parando ao lado de Clarisse e vendo o motivo daquela comoção. Sem dizer coisa alguma, ofereceu a bebida quente.

A jovem tomou a xícara e respirou fundo, deixando o cheiro da bebida lhe acalmar.

— Ah, vovó... Preciso parar de comprar café em pó.

— Vou te presentear com um moedor no seu aniversário. Mas vamos para dentro, sim? — Cecília deixou o caminho livre para Clarisse passar antes dela. — Toda essa irritação não vai solucionar seu problema, você sabe. Essas coisas acontecem.

— Tudo deu errado — a jovem lamentou, agitada. — A Adelaide disse que não sirvo pra cuidar do August, tentaram me assaltar, reprovei em urbanismo, o cliente não aceitou o projeto que custou duas semanas da minha vida e ainda quebraram meu retrovisor. Eu devo ser a pessoa mais azarada do mundo!

Clarisse desabou no sofá, certa de que morreria se aquele dia-de-cão não acabasse. Enquanto preparava uma nova leva de lamentações, August veio do interior da casa e pulou no colo dela, enchendo seu rosto de beijos. Ela só teve tempo de desviar a xícara de café, para não levar um banho. Pax apareceu atrás do menino e latiu forte para os dois.

— Meu Deus! Fui atropelada! — Clarisse falou, abraçando o menino e balançando-o em seu colo, enquanto ele ria e tentava se livrar dela.

— Está melhor agora? — a senhora perguntou, notando a nuvem de ira desaparecer e o semblante de Clarisse, que até então estava com ar de desastre, ser transformado.

— Nunca estive melhor — respondeu com sinceridade. — Estou cheia de suor de criança e isso me deixa feliz.

Ao soltar August, o menino saiu correndo pela casa outra vez, arrastando Haroldo consigo. O tigre de pelúcia parecia sofrer, enquanto era chocado contra a mobília de Cecília. Pax seguiu o menino, como era seu costume, antes que Clarisse conseguisse fazer carinho em seu pescoço. Sempre que estava presente, o cachorro seguia August como um guarda-costas.

— O que foi isso no seu pescoço? — Cecília perguntou, reparando a queimadura.

— O bandido arrancou meu colar com um puxão. — contou a Bertrand mais velha, omitindo que se atracou com o homem para recuperar suas coisas de volta. Deixou o pingente guardado na bolsa, com a chave do carro.

— Que horror! — A senhora falou, cobrindo os lábios com a mão. — Você se machucou mais? Ele levou muita coisa?

— Tô bem. Ele não levou nada importante — a jovem respondeu. — Tá tudo bem. Quero esquecer que aconteceu e seguir em frente.

— Mas ele receberá o que merece, minha filha. Esteja certa disso. Não esqueça de fazer o boletim com seu tio Tomas. Luíza me disse que ele vai cobrir o Roland na delegacia.

— Depois vejo isso... — evadiu, pois não queria falar com os tios. — Mas tinha esperança de conversar com o padrinho, antes dele partir.

— E acredito que deve demorar um pouco mais do que o costume, por causa da saúde da mãe dele — a senhora completou.

— Ela piorou?

— Não! Graças a Deus, não. Marie contou a ele que a senhora Lamartine já está estável, mas ele disse que tinha outras coisas pra resolver por lá.

— Menos mal — sentenciou. — Vou levar o Pax para casa.

— Você sabe que dou conta dele — Cecília apontou.

— Mas fui eu quem me comprometi — Clarisse falou, estudando a sala de sua avó. Os gizes de August estavam organizados, os papéis estavam amontoados e os lápis estavam dentro do estojo, diferente da semana passada.

— E o que foi que a diretora te disse sobre o August? — Cecília perguntou, depois de bebericar o último gole de café. — Ela me procurou quando fui buscá-lo. Trocamos meia dúzia de palavras e eu fugi. A mulher não sabe ouvir as pessoas.

Clarisse compartilhava dessa opinião.

— Ela me mostrou um desenho bem macabro e disse que ele está agressivo com as outras crianças e com as professoras. Não sei o que fazer e me sinto horrível. Ela disse que eu não estou cumprindo o papel de mãe dele.

— Pode parar por aí. E quem foi que disse que isso é responsabilidade sua? — ela confrontou, tomando um ar sério. — Você vai dar ouvidos àquela diretora? Clarisse, pelo amor de Deus! Você nunca será a mãe do August e nunca suprirá a carência paterna que ele tem, assim como você.

A neta franziu o cenho.

— Só o Senhor pode suprir por completo nossa necessidade de paternidade.

— Já tivemos essa conversa, vovó... — a jovem interrompeu, sendo cética. Como um Deus paterno permitiria que eu ficasse órfã?

— E teremos outras mais, até que isso entre no seu coração machucado e endurecido — Cecília falou com ternura, repousando a mão sobre a de neta. — Até lá, coloque na sua cabeça de uma vez por todas que você é a irmã do August, não a mãe. Então seja a melhor irmã que você puder.

— E o que eu faço sobre o comportamento dele? — Clarisse retomou, mudando de assunto.

— Eu passo mais tempo com ele do que você — a senhora disse, meneando o pescoço. — Nosso August é um anjo.

— Mas isso é em casa, vovó. Ela diz que o August é agressivo com os outros alunos da turma dele, quando nenhuma de nós está por perto. Se tivesse tudo bem, a diretora não procuraria a gente fora das reuniões mensais. Ela disse que August deveria voltar a fazer terapia.

— É ela quem precisa de terapia — Cecília falou, com impaciência.

Clarisse riu, mas por fim sua expressão voltou a ficar séria.

— Temos que ficar de olho nele.

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O vento adentrou o quarto de Clarisse durante a madrugada, enquanto ela se mexia na cama no meio de algum sonho intranquilo. Uma gota de suor escorreu de sua fronte depois de o vento ter passado pelos cachos escuros de seus cabelos. Tinha outro pesadelo e a mulher apertava os olhos formando marcas em sua testa.

Não distante dali, no andar de baixo do sobrado dos Bertrand, estava Pax. Esperando o retorno de seu dono, o cachorro despertava toda vez que algum carro passava pela rua durante a madrugada. Impaciente pela espera, ele se levantou e começou a vasculhar a casa, procurando algo para mordiscar.

Ao deitar-se novamente, apoiou a cabeça sobre as patas dianteiras e olhou para o teto, com as grandes orelhas pendendo para baixo. Suas pálpebras pesaram e o sono começou a dominá-lo de forma que nem percebeu que o mesmo carro havia passado na rua pela quarta vez.

A mente de Pax o envolveu de escuro, mergulhando-o em seu próprio subconsciente, mas, antes de que qualquer imagem fosse projetada ou qualquer som fosse interpretado, o vento o acordou. Uma brisa gelada passou por debaixo da porta, arrepiando levemente a densa camada de pelos nas costas do cachorro. Quando sacudiu a cabeça, espalhando pelos e gotas de saliva no tapete da porta, começou a ouvir sussurros na escuridão.

Ainda deitado, ergueu as orelhas em sinal de alerta. Ouviu um carro parar em frente da casa e as vozes de dois homens desconhecidos conversando. Erguendo-se sobre as patas, o cachorro galgou pela sala, subiu no sofá e olhou pela janela.

Notou que um dos homens desceu do veículo e soltou fumaça pela boca, enquanto o outro atravessou a rua, ambos encarando a casa. Sentindo perigo, Pax começou a bufar e rosnar, descendo do sofá e arranhando a porta.

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Escorregou pelas rochas até a trilha, divertindo-se com a menina norte-americana de cabelos negros e olhos verdes que a desafiou para uma corrida, mesmo sabendo que, com as pernas curtas que tinha, nunca venceria Clarisse, não importava quanto talento tivesse. O bosque de coníferas cercava-as em silêncio. O chão era repleto de folhas secas, pinhas e gravetos que estalavam sob as passadas apressadas das duas meninas.

Eu ainda me lembro da risada dela? — Clarisse se perguntou, permitindo que Melanie passasse à sua frente e tivesse um gostinho de vitória.

— Lenta demais, Bertrand? Qual é? Você consegue fazer melhor! — lembrou-se de Melanie dizer aquilo com frequência. E então o rosto alegre da cadete Ports se desfigurou em pavor. — Ai que merda! Corre, Bertrand! Corre!

Lobos uivaram e rosnaram e, quando percebeu, fugia deles sozinha até ser encurralada contra as rochas. Uma fera cinzenta saltou da penumbra das árvores e mordeu sua perna.

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Um único som grave fez Clarisse acordar assustada. Era Pax latindo muito alto. A jovem o chamou com um tom irritado, pois o cachorro acordaria toda a vizinhança, mas ele continuou ladrando escadas acima e atravessou o quarto dela, passando por cima da cama e indo direto para a varanda, onde latiu a plenos pulmões. Luzes por toda rua começaram a se acender e Clarisse viu de relance um carro em frente à sua casa, que saiu cantando pneus.

— O que foi isso? — ela perguntou, sentando na cama e limpando o rosto com as mãos. Estava atordoada demais para entender o que se passava.

A cabeça latejava, todo o seu corpo ainda tremia pelo susto e a cicatriz de sua coxa formigava, como acontecia em todas as mudanças de clima ou após passar por emoções intensas. O sonho tornou vívida outra vez as memórias do dia em que Melanie e ela foram atacadas pelos lobos. O coração batia acelerado, por conta do susto que tomou, e ela tinha dificuldade de respirar.

Pax se sentou em frente à ela, com a língua para fora e gotejando saliva. A mulher permanecia atordoada, cansada e com dor. Lutava para vencer os tremeliques que todo aquele estardalhaço causou. Sentiu raiva dela mesma, embora não entendesse o motivo, seguido de vergonha e medo. Teve um dia terrivelmente agitado e nem ao menos conseguiu dormir em paz!

Algumas lágrimas começaram a escorrer pelo seu rosto involuntariamente. Lamentava sua consciência perturbada, o luto, as contas que precisava pagar no mês que vem... Eram tantas coisas! E era difícil entender tudo aquilo e ter que resolver tudo sozinha. Estava confusa consigo mesma e o cachorro parecia perceber. Enquanto Clarisse quase se debulhava em lágrimas, Pax apoiou a cabeça nos joelhos da mulher. Ela levou as duas mãos ao pescoço do Pirineus e apoiou sua testa sobre a dele.

— Obrigada... — sussurrou para ele.

Então Pax ganiu, fazendo com que ela se afastasse, mas não o bastante. Ele se impulsionou para frente e começou a lamber o rosto dela, fazendo-a se contorcer, sem chances de defesa, enquanto Pax lavava suas lágrimas com saliva e esfregava sua face com a língua áspera. Quando Clarisse conseguiu afastá-lo, começou a rir.

— Ah, Pax! Mas que... Ergh! Seu nojento!

Passou a mão sobre o rosto para tirar o excesso de baba, que ficou pingando de seus dedos, e em seguida foi ao banheiro para lavar o corpo. Seu sono angustiante a fez transpirar e agora estava lambida de cachorro.

Enquanto a água quente escorria pelo corpo, tentava afastar seus pensamentos sem sucesso.

Será que a Melanie está bem? — a pergunta de repente.

Pax a seguiu até a porta e lá esperou, perseguindo-a quando voltou para o quarto. O cão queria ter certeza de que estava tudo bem com ela.

August apareceu arrastando Haroldo e resmungando alguma coisa incompreensível. Os latidos de Pax o acordaram, mas ele apenas desabou na cama de Clarisse e voltou a dormir. Quando ela se deitou, o Pirineus subiu na cama, deitou ao seu lado e adormeceu também. Ela acariciou seus pelos brancos como a neve distraidamente, se sentindo um pouco melhor por não estar completamente sozinha nessas noites tão sombrias.

Olhando para os pulsos, tateou um deles com o polegar, sentindo as cicatrizes dos cortes que fizera. Não se lembrava de quando foi que ela tentou fazer algo tão horrível contra si mesma. Hoje, anos mais velha e grata pelas responsabilidades que adquirira, pelos amigos que conquistara e pela família que tinha, permitiu-se refletir.

Se minha mente não tivesse apagado, o que teria acontecido? Eu teria sofrido tanto, quando recobrei a lucidez? Será que ainda estaria viva?

Por mais que os dias passem e pareça estar tudo bem, a dor sempre volta. No escuro, parece que escuto seus sussurros e é uma sensação tão ruim! Mas quando acordo e vejo o sorriso desse pequenino, tenho a certeza de que não estou sozinha nessa luta, como a vovó falou. Não sou fraca e sei que vou superar os obstáculos no meu coração e viver uma vida feliz. Nada vai trazer meus pais de volta e o mundo não acabou porque eles partiram.

Ela se virou e abraçou o irmão. Aquela figura pequena e sonhadora coloria os dias de Clarisse com amor. Ela faria qualquer coisa para protegê-lo do mal e continuaria fazendo, enquanto vivesse. Esse garotinho de pele avermelhada e cabelos cacheados, em seus braços, era sua missão e motivação para continuar lutando.

A vida é mais do que dias ruins.

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