À noite, depois do trabalho, Clarisse estava indo buscar o irmão na casa de Cecília, como de costume. Foi um dia estressante e ela ainda refletia sobre aquele desenho de August e sobre o assalto enquanto dirigia pela Avenida 23 de Maio. O trânsito era infernal e, distraída em pensamentos como estava, não reparou que comia a faixa. Como resultado, um motoqueiro quebrou o retrovisor do seu Celta vermelho desbotado e não parou para se retratar.
Possessa de raiva, estacionou na rua de sua avó e desceu do carro para ver o que restou do retrovisor, respirando fundo e olhando na internet quanto custa comprar um novo.
Pela janela, a matriarca a viu na calçada e percebeu de imediato a nuvem de fúria que pairava sobre sua neta. Indo à cozinha, pegou uma xícara de café fresquinho e foi para fora, parando ao lado de Clarisse e vendo o motivo daquela comoção. Sem dizer coisa alguma, ofereceu a bebida quente.
A jovem tomou a xícara e respirou fundo, deixando o cheiro da bebida lhe acalmar.
— Ah, vovó... Preciso parar de comprar café em pó.
— Vou te presentear com um moedor no seu aniversário. Mas vamos para dentro, sim? — Cecília deixou o caminho livre para Clarisse passar antes dela. — Toda essa irritação não vai solucionar seu problema, você sabe. Essas coisas acontecem.
— Tudo deu errado — a jovem lamentou, agitada. — A Adelaide disse que não sirvo pra cuidar do August, tentaram me assaltar, reprovei em urbanismo, o cliente não aceitou o projeto que custou duas semanas da minha vida e ainda quebraram meu retrovisor. Eu devo ser a pessoa mais azarada do mundo!
Clarisse desabou no sofá, certa de que morreria se aquele dia-de-cão não acabasse. Enquanto preparava uma nova leva de lamentações, August veio do interior da casa e pulou no colo dela, enchendo seu rosto de beijos. Ela só teve tempo de desviar a xícara de café, para não levar um banho. Pax apareceu atrás do menino e latiu forte para os dois.
— Meu Deus! Fui atropelada! — Clarisse falou, abraçando o menino e balançando-o em seu colo, enquanto ele ria e tentava se livrar dela.
— Está melhor agora? — a senhora perguntou, notando a nuvem de ira desaparecer e o semblante de Clarisse, que até então estava com ar de desastre, ser transformado.
— Nunca estive melhor — respondeu com sinceridade. — Estou cheia de suor de criança e isso me deixa feliz.
Ao soltar August, o menino saiu correndo pela casa outra vez, arrastando Haroldo consigo. O tigre de pelúcia parecia sofrer, enquanto era chocado contra a mobília de Cecília. Pax seguiu o menino, como era seu costume, antes que Clarisse conseguisse fazer carinho em seu pescoço. Sempre que estava presente, o cachorro seguia August como um guarda-costas.
— O que foi isso no seu pescoço? — Cecília perguntou, reparando a queimadura.
— O bandido arrancou meu colar com um puxão. — contou a Bertrand mais velha, omitindo que se atracou com o homem para recuperar suas coisas de volta. Deixou o pingente guardado na bolsa, com a chave do carro.
— Que horror! — A senhora falou, cobrindo os lábios com a mão. — Você se machucou mais? Ele levou muita coisa?
— Tô bem. Ele não levou nada importante — a jovem respondeu. — Tá tudo bem. Quero esquecer que aconteceu e seguir em frente.
— Mas ele receberá o que merece, minha filha. Esteja certa disso. Não esqueça de fazer o boletim com seu tio Tomas. Luíza me disse que ele vai cobrir o Roland na delegacia.
— Depois vejo isso... — evadiu, pois não queria falar com os tios. — Mas tinha esperança de conversar com o padrinho, antes dele partir.
— E acredito que deve demorar um pouco mais do que o costume, por causa da saúde da mãe dele — a senhora completou.
— Ela piorou?
— Não! Graças a Deus, não. Marie contou a ele que a senhora Lamartine já está estável, mas ele disse que tinha outras coisas pra resolver por lá.
— Menos mal — sentenciou. — Vou levar o Pax para casa.
— Você sabe que dou conta dele — Cecília apontou.
— Mas fui eu quem me comprometi — Clarisse falou, estudando a sala de sua avó. Os gizes de August estavam organizados, os papéis estavam amontoados e os lápis estavam dentro do estojo, diferente da semana passada.
— E o que foi que a diretora te disse sobre o August? — Cecília perguntou, depois de bebericar o último gole de café. — Ela me procurou quando fui buscá-lo. Trocamos meia dúzia de palavras e eu fugi. A mulher não sabe ouvir as pessoas.
Clarisse compartilhava dessa opinião.
— Ela me mostrou um desenho bem macabro e disse que ele está agressivo com as outras crianças e com as professoras. Não sei o que fazer e me sinto horrível. Ela disse que eu não estou cumprindo o papel de mãe dele.
— Pode parar por aí. E quem foi que disse que isso é responsabilidade sua? — ela confrontou, tomando um ar sério. — Você vai dar ouvidos àquela diretora? Clarisse, pelo amor de Deus! Você nunca será a mãe do August e nunca suprirá a carência paterna que ele tem, assim como você.
A neta franziu o cenho.
— Só o Senhor pode suprir por completo nossa necessidade de paternidade.
— Já tivemos essa conversa, vovó... — a jovem interrompeu, sendo cética. Como um Deus paterno permitiria que eu ficasse órfã?
— E teremos outras mais, até que isso entre no seu coração machucado e endurecido — Cecília falou com ternura, repousando a mão sobre a de neta. — Até lá, coloque na sua cabeça de uma vez por todas que você é a irmã do August, não a mãe. Então seja a melhor irmã que você puder.
— E o que eu faço sobre o comportamento dele? — Clarisse retomou, mudando de assunto.
— Eu passo mais tempo com ele do que você — a senhora disse, meneando o pescoço. — Nosso August é um anjo.
— Mas isso é em casa, vovó. Ela diz que o August é agressivo com os outros alunos da turma dele, quando nenhuma de nós está por perto. Se tivesse tudo bem, a diretora não procuraria a gente fora das reuniões mensais. Ela disse que August deveria voltar a fazer terapia.
— É ela quem precisa de terapia — Cecília falou, com impaciência.
Clarisse riu, mas por fim sua expressão voltou a ficar séria.
— Temos que ficar de olho nele.
------------------------------------------------
O vento adentrou o quarto de Clarisse durante a madrugada, enquanto ela se mexia na cama no meio de algum sonho intranquilo. Uma gota de suor escorreu de sua fronte depois de o vento ter passado pelos cachos escuros de seus cabelos. Tinha outro pesadelo e a mulher apertava os olhos formando marcas em sua testa.
Não distante dali, no andar de baixo do sobrado dos Bertrand, estava Pax. Esperando o retorno de seu dono, o cachorro despertava toda vez que algum carro passava pela rua durante a madrugada. Impaciente pela espera, ele se levantou e começou a vasculhar a casa, procurando algo para mordiscar.
Ao deitar-se novamente, apoiou a cabeça sobre as patas dianteiras e olhou para o teto, com as grandes orelhas pendendo para baixo. Suas pálpebras pesaram e o sono começou a dominá-lo de forma que nem percebeu que o mesmo carro havia passado na rua pela quarta vez.
A mente de Pax o envolveu de escuro, mergulhando-o em seu próprio subconsciente, mas, antes de que qualquer imagem fosse projetada ou qualquer som fosse interpretado, o vento o acordou. Uma brisa gelada passou por debaixo da porta, arrepiando levemente a densa camada de pelos nas costas do cachorro. Quando sacudiu a cabeça, espalhando pelos e gotas de saliva no tapete da porta, começou a ouvir sussurros na escuridão.
Ainda deitado, ergueu as orelhas em sinal de alerta. Ouviu um carro parar em frente da casa e as vozes de dois homens desconhecidos conversando. Erguendo-se sobre as patas, o cachorro galgou pela sala, subiu no sofá e olhou pela janela.
Notou que um dos homens desceu do veículo e soltou fumaça pela boca, enquanto o outro atravessou a rua, ambos encarando a casa. Sentindo perigo, Pax começou a bufar e rosnar, descendo do sofá e arranhando a porta.
------------------------------------------------
Escorregou pelas rochas até a trilha, divertindo-se com a menina norte-americana de cabelos negros e olhos verdes que a desafiou para uma corrida, mesmo sabendo que, com as pernas curtas que tinha, nunca venceria Clarisse, não importava quanto talento tivesse. O bosque de coníferas cercava-as em silêncio. O chão era repleto de folhas secas, pinhas e gravetos que estalavam sob as passadas apressadas das duas meninas.
Eu ainda me lembro da risada dela? — Clarisse se perguntou, permitindo que Melanie passasse à sua frente e tivesse um gostinho de vitória.
— Lenta demais, Bertrand? Qual é? Você consegue fazer melhor! — lembrou-se de Melanie dizer aquilo com frequência. E então o rosto alegre da cadete Ports se desfigurou em pavor. — Ai que merda! Corre, Bertrand! Corre!
Lobos uivaram e rosnaram e, quando percebeu, fugia deles sozinha até ser encurralada contra as rochas. Uma fera cinzenta saltou da penumbra das árvores e mordeu sua perna.
------------------------------------------------
Um único som grave fez Clarisse acordar assustada. Era Pax latindo muito alto. A jovem o chamou com um tom irritado, pois o cachorro acordaria toda a vizinhança, mas ele continuou ladrando escadas acima e atravessou o quarto dela, passando por cima da cama e indo direto para a varanda, onde latiu a plenos pulmões. Luzes por toda rua começaram a se acender e Clarisse viu de relance um carro em frente à sua casa, que saiu cantando pneus.
— O que foi isso? — ela perguntou, sentando na cama e limpando o rosto com as mãos. Estava atordoada demais para entender o que se passava.
A cabeça latejava, todo o seu corpo ainda tremia pelo susto e a cicatriz de sua coxa formigava, como acontecia em todas as mudanças de clima ou após passar por emoções intensas. O sonho tornou vívida outra vez as memórias do dia em que Melanie e ela foram atacadas pelos lobos. O coração batia acelerado, por conta do susto que tomou, e ela tinha dificuldade de respirar.
Pax se sentou em frente à ela, com a língua para fora e gotejando saliva. A mulher permanecia atordoada, cansada e com dor. Lutava para vencer os tremeliques que todo aquele estardalhaço causou. Sentiu raiva dela mesma, embora não entendesse o motivo, seguido de vergonha e medo. Teve um dia terrivelmente agitado e nem ao menos conseguiu dormir em paz!
Algumas lágrimas começaram a escorrer pelo seu rosto involuntariamente. Lamentava sua consciência perturbada, o luto, as contas que precisava pagar no mês que vem... Eram tantas coisas! E era difícil entender tudo aquilo e ter que resolver tudo sozinha. Estava confusa consigo mesma e o cachorro parecia perceber. Enquanto Clarisse quase se debulhava em lágrimas, Pax apoiou a cabeça nos joelhos da mulher. Ela levou as duas mãos ao pescoço do Pirineus e apoiou sua testa sobre a dele.
— Obrigada... — sussurrou para ele.
Então Pax ganiu, fazendo com que ela se afastasse, mas não o bastante. Ele se impulsionou para frente e começou a lamber o rosto dela, fazendo-a se contorcer, sem chances de defesa, enquanto Pax lavava suas lágrimas com saliva e esfregava sua face com a língua áspera. Quando Clarisse conseguiu afastá-lo, começou a rir.
— Ah, Pax! Mas que... Ergh! Seu nojento!
Passou a mão sobre o rosto para tirar o excesso de baba, que ficou pingando de seus dedos, e em seguida foi ao banheiro para lavar o corpo. Seu sono angustiante a fez transpirar e agora estava lambida de cachorro.
Enquanto a água quente escorria pelo corpo, tentava afastar seus pensamentos sem sucesso.
Será que a Melanie está bem? — a pergunta de repente.
Pax a seguiu até a porta e lá esperou, perseguindo-a quando voltou para o quarto. O cão queria ter certeza de que estava tudo bem com ela.
August apareceu arrastando Haroldo e resmungando alguma coisa incompreensível. Os latidos de Pax o acordaram, mas ele apenas desabou na cama de Clarisse e voltou a dormir. Quando ela se deitou, o Pirineus subiu na cama, deitou ao seu lado e adormeceu também. Ela acariciou seus pelos brancos como a neve distraidamente, se sentindo um pouco melhor por não estar completamente sozinha nessas noites tão sombrias.
Olhando para os pulsos, tateou um deles com o polegar, sentindo as cicatrizes dos cortes que fizera. Não se lembrava de quando foi que ela tentou fazer algo tão horrível contra si mesma. Hoje, anos mais velha e grata pelas responsabilidades que adquirira, pelos amigos que conquistara e pela família que tinha, permitiu-se refletir.
Se minha mente não tivesse apagado, o que teria acontecido? Eu teria sofrido tanto, quando recobrei a lucidez? Será que ainda estaria viva?
Por mais que os dias passem e pareça estar tudo bem, a dor sempre volta. No escuro, parece que escuto seus sussurros e é uma sensação tão ruim! Mas quando acordo e vejo o sorriso desse pequenino, tenho a certeza de que não estou sozinha nessa luta, como a vovó falou. Não sou fraca e sei que vou superar os obstáculos no meu coração e viver uma vida feliz. Nada vai trazer meus pais de volta e o mundo não acabou porque eles partiram.
Ela se virou e abraçou o irmão. Aquela figura pequena e sonhadora coloria os dias de Clarisse com amor. Ela faria qualquer coisa para protegê-lo do mal e continuaria fazendo, enquanto vivesse. Esse garotinho de pele avermelhada e cabelos cacheados, em seus braços, era sua missão e motivação para continuar lutando.
A vida é mais do que dias ruins.