l'a vie rouge

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    Lá estava ele, tão vermelho quanto da primeira vez que me vi perdida em suas curvas. Me agarrei ao tecido mal tratado e não pude conter meus dedos tão trêmulos quanto na noite em que rodopiamos pelo salão da vida.
   Você era a estrela mais bonita daquele céu. Todos estavam apagados, com o amor  extinto nos corações, e você tinha todo o universo brilhando em seu peito, toda luz da cidade irradiando do seu sorriso.
    Você me possuia por completo, eu era totalmente sua, sempre fui. As pessoas olhavam, mas deixamos que apreciassem nosso amor, deixamos que vissem o vermelho que nos rodeava, a paixão vinho escuro que tinha gosto da sua boca...
     O carpete de casa é diferente do piso do salão, mas ainda consigo ouvir o barulho dos seus saltos batendo no ritmo da música. Rodei até ficar tonta: você me segurou. Mas agora caio no sofá da sala junto à peça vermelha que invade minha visão e me aperta o coração.
      O cheiro também é diferente, cheira a poeira e morte. Antes tinha seu cheirinho doce de cereja que me dava vontade de te morder toda. Tirei a franja dos seus olhos, sua risada tão leve e pura como o bater de asas de um beija-flor.
      Abri uma garrafa de Whiskey e servi com gelo, sua bebida favorita. Os dois copos brilhavam na luz amarela do nosso antigo quarto. Nunca troquei a lâmpada falha, você gostava de dizer que as luzes da cidade atrapalhavam a verdadeira natureza do céu, mas a verdade é que só o brilho nos seus olhos e o vermelho do seu corpo eram a parte mais bela do universo.
      Atravessando a rua o vento desarrumava seu cabelo, na minha frente, rindo como se fosse a pessoa mais feliz do mundo você soltou minha mão e me senti fria. Fria como quando a música acaba e o calor do momento evapora junto das gotas de suor que ficam coladas à roupa.
      Me lembro exatamente quando perdi toda a fé que tinha no mundo, não acredito mais em magia ou milagres. Talvez você fosse minha fada, anjo enviado em minha vida; por isso nunca mais tive a sensação de completude, talvez por isso tenha me tornado uma boneca de vidro, dura e sem sentimentos, daquelas que não dançam e são as últimas a serem vendidas.
      As lágrimas molham o vestido agora, deixando o vermelho em um tom mais escuro como as manchas de sangues que ainda não saíram. Vermelhas. Vermelhas como os faróis do carro que tão rápido tirou sua vida e presenteou os céus com uma alma tão iluminada.
      Me agarro a esse vestido desgraçado como me agarrei ao seu corpo inerte no asfalto morno daquela madrugada vermelha. Me agarro a sua última e mais viva memória, a prova de que nosso final talvez fosse feliz. Te sinto tão perto que consigo sentir seus braços em volta da minha cintura e meus dedos estão brancos de tanto apertar o cetim surrado.
     O último giro. A saia balança, já perdeu todo seu vermelho, agora desbota como meu coração. O whiskey acabou, todos já pegaram os sapatos e estão indo em direção à saida porque a música já parou. Só restamos eu e você.
      Mas você me deixou como os pássaros deixam seus ninhos para fazerem verão, a única diferença é de que me deixou em um eterno inverno, onde as únicas cores são cinza e branco. Nunca mais verei o vermelho vivo desse vestido que agora guardo em uma caixa no fundo do armário de onde nunca deveria ter saído.
      Esse vestido me trás as lembranças mais lindas de minha vida, ao mesmo tempo me deixa estática, como quem acorda de um sono profundo.
      Hoje, meu amor, estou dividida entre a lealdade que devo a vida e a tentação vermelha de me juntar a ti numa eterna felicidade dançante.

Valse SentimentaleWhere stories live. Discover now