Sangue

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"Não consigo me mover", pensa o pobre moribundo. O fedor das vielas cria uma triste harmonia com as calçadas imundas. Um poste apaga e, como um preguiçoso de domingo, acende sua luz por pouco tempo. O desespero é constante nas desertas ruas da grande cidade. Não existem pássaros aqui. Não existem peixes. Os donos da madrugada são os animais urbanos. Cachorros abandonados, ratos esfomeados, morcegos. E mendigos.

Um cachorro aproxima-se do homem sentado na calçada. Ambos estão magros e exaustos. O velho acaricia a cabeça do animal. Ele percebe a felicidade da criatura apenas com poucas carícias. A chama acende dentro de si. Aquela chama que há muito tenta extinguir. Com toda a pureza do seu instinto, aproxima seus caninos afiados do tronco do bicho e o morde. Enquanto o homem suga o sangue do animal, suas energias vitais se regeneram levemente. O líquido âmbar escorre de seus lábios ressecados e os ganidos ecoam nos becos. O animal suspira o restante de sua triste vida. "O sangue não tem o mesmo gosto de antes",  pensa o homem esfarrapado enquanto limpa a boca com a manga da blusa mofada. Agora, a criatura das trevas pode se mover um pouco mais.

Ajeitando-se na calçada, o mendigo observa o céu negro. As eras mudaram drasticamente inúmeras vezes, estrelas nasceram e morreram, galáxias afundaram em brigas cósmicas, mas o céu nunca envelheceu. Ainda se lembrava da Aurora do Mundo. Não conhecera o Paraíso. Seus pais, os primeiros homens, não permitiram isso. Foram expulsos muito antes do seu nascimento. Junto com seu irmão, numa tentativa frustrada de recuperar a terra prometida, tentaram agradar o Criador inúmeras vezes. Maldito momento de angústia e inveja. Mesmo após tantos milênios, ainda sente a textura e o calor do sangue em suas mãos. O sangue do seu irmão. A punição do Grande Pai o segue pela eternidade. A maldição de se alimentar eternamente de poeira e sangue.

Os tempos foram tortuosos. Vira a criação e a destruição da sociedade algumas vezes. Misturou-se com o seu desenvolvimento. Crescera e fora próspero. Tornara-se senhor de inúmeras terras. Tudo desmoronou. Foi acusado de assassinato no início, mas sua lenda se alterou. Imortal, amaldiçoado, filho do demônio. Após seu encontro com um certo conde, começou uma nova espécie de seres no mundo. Os filhos da noite. Ele, o pai de todos, esquecido na sua própria escuridão.

Inúmeras vezes tentou parar. Tirar a vida nunca funcionou. A sede de sangue sempre foi maior do que ele. Já dizimou incontáveis cidades. Banhara-se no sangue de crianças. Mergulhou nas trevas e tentou ser rei. Foi derrotado. Todas as vezes. Incontáveis vezes. Já se apaixonou. Foi retribuído eventualmente. Conheceu o prazer de ter dois filhos, do seu sangue, da sua linhagem. A alegria não durou. A selvageria aparecia e destruía tudo. Seus filhos foram assassinados com estacas no coração. Malditos caçadores. Tentaram matá-lo dessa forma. Nunca conseguiram.

Névoa. Sua vida eterna não passa de uma densa e negra névoa acima do mundo. Não existem demônios. Seus filhos e seguidores já não habitam mais o planeta. Só existe ele. E dele, o mundo não tem mais conhecimento. Não se importam com o nêmesis mais perigoso que o Éden já viu.

Sua vontade esgotou. Tenta não desejar o sangue humano. Não quer reviver os mesmos caminhos inúmeras e inúmeras vezes. O sangue animal o faz levantar e andar. Isso basta. Seus poderes enfraqueceram há eras. Nenhum indigente vive com ele. Alguns morreram em suas decaídas e os outros fugiram. Os animais são diferentes. Estes são puros. Eles aparecem buscando amor e seus caninos entregam-lhes o descanso. O mendigo controla a superpopulação canina na grande cidade e os adoráveis animais param de sofrer. Uma troca equivalente para manter o equilíbrio, assim ele pensa.

Uma mão branca e delicada, com anéis de ouro, estica-se na sua direção. Alguém oferecendo conforto. Na própria casa. "Posso recomeçar", o moribundo pensa. "Me alimentar como humano. Talvez trabalhar. Sustentar uma família". O velho cogita estes devaneios no breve momento em que a mão se estende, como um inocente garoto. Ele agarra seu braço. Levanta e observa os belos olhos azuis que pousam sobre os seus. Sedosos cabelos loiros seguem as curvas da bela dama. Uma mecha do cabelo atrás da orelha ilumina seu longo e branco pescoço.

O sangue espalhado pela imunda calçada destaca-se na madrugada. O corpo inerte no chão, já sem vida, gritou com toda a força dos seus pulmões momentos antes. O imortal não percebeu quando agiu. 

Some com a névoa da cidade. Com mais um peso na sua enorme lista de presas, aquele que já foi um homem não pode negar. O gosto do sangue humano é um mal impossível de escapar. Mesmo após tantos milênios, a força maior o chama. Não importa o tempo que passou, a maldição sempre volta.

O sangue fala mais alto. 

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