Epílogo

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Valentina, como qualquer criança saudável, cresceu, graças a Deus. Sim, porque por mais que bebês sejam fofos e lindos quando ainda não fazem nada sozinhos, eles dão um certo trabalho. E mesmo que nos arrependamos lá na frente por termos torcido para que eles tivessem crescido logo, no fundo sentimos uma alegria imensa por vê-los amadurecerem e se transformarem em pessoinhas cheias de saúde e prontas para conquistar o mundo. 
Mas ela ainda não é uma adulta, nem uma adolescente. Está longe disso. Valentina tem 6 anos, há precisamente dois dias. Ainda não presenciamos a queda do seu primeiro dente de leite ou sua primeira formatura, mas estivemos lá quando ela andou de bicicleta pela primeira vez e a encorajamos no seu primeiro dia de aula. Trocamos muitas fraldas, compramos muitas bonecas, escutamos muitos choros vindos de joelhos ralados. A ensinamos a nadar e exercitamos o início da sua leitura. Fomos pais de primeira viagem, mas segundo Hérica, nos saímos muito bem.
Eu concordo, apesar de não ter nenhuma base como referência. Valentina parece uma criança bastante serelepe. Sua simpatia e seu jeito de parecer gostar de todo mundo são sua marca registrada. Ela quase nunca se irrita, e às vezes, quando não sabe como reagir a um determinado estímulo, opta por cair na gargalhada. Ela pode fazer amigos com uma simples saída, seja indo ao parque ou à padaria. É humanamente impossível não amá-la. 
Para uma melhor educação, Bruno e eu dividimos nossas obrigações como pais. Isso significa que ele é responsável pelos “sins”, enquanto que dizer os “nãos” necessários sobra para mim. Felizmente (porque a última coisa que eu quero é me tornar uma mãe chata e repressora competindo com um pai engraçado e “maneiro”), Valentina é uma criança boa. Um anjo, por mais agitada que seja. Não precisamos (eu não preciso) reprimi-la duas vezes. Ela simplesmente entende que, caso eu não a deixe fazer alguma coisa, deve haver algum motivo, e magicamente obedece (o que é um tanto esquisito, crianças de 6 anos não deveriam ter esse discernimento). Eu realmente não tenho do que reclamar. Muitas crianças são umas pestes, mas não ela. E ela tem só 6 anos. Há precisamente dois dias. O que faz com que hoje seja um dia um pouco especial para mim. 
– Emma? - Chamei, chegando na cozinha e encontrando-a no fogão. 
– Oi, Ninha! - Ela respondeu toda contente - Feliz aniversário!
– Brigada… - Falei ainda morrendo de sono, abraçando-a e me jogando em cima dela - Que horas são? 
– Quase 11h. Estou fazendo o almoço, daqui a pouco eles chegam… 
– Merda… Dormi demais. - Falei, levando a mão à cabeça - Eu deveria estar te ajudando… 
– Coisa nenhuma! É seu aniversário. E aniversariantes não trabalham. 
Emma gosta de me dar ordens. A essa altura nós já temos esse nível de intimidade mesmo.
– Ei, eu gosto de cozinhar, e você sabe diss…
– Você - não - vai - cozinhar. - Bufei.
Ela é teimosa como uma mula, e eu sabia que a única forma de chegar perto do fogão seria acertá-la com uma frigideira e deixá-la desacordada em um canto. Desisti de brigar.
– Ok. Onde está Valentina? 
– Ela estava na casa da árvore da última vez que eu vi. 
Uma casa na árvore. Bruno deu a Valentina uma casa na árvore como presente de 6 anos. E não é uma daquelas casas na árvore feitas de tocos de madeira e cordas: É uma casa com porta e janelas de vidro, varanda, escada e dois andares. Uma família poderia facilmente morar ali.
A “casinha” foi construída na grande árvore rosa (como a chamamos) que fica no canto do jardim. Graças ao empenho de Bruno em procurar uma empresa especializada em construções desse tipo e deixar claro que a queria pronta o quanto antes, ela foi terminada em menos de três semanas. Foram três semanas com placas enormes em torno da obra, impedindo que Valentina visse do que se tratava para que, no dia do seu aniversário, ela tivesse uma surpresa. E ela ficou surpresa. E, para ser sincera, eu também. Era mesmo um trabalho belíssimo, embora eu tenha adquirido uma leve dor de cabeça só de pensar nos perigos que minha filha poderia passar naquela varanda, por mais que a casa ficasse só a dois metros do chão. E por mais que houvesse colchões fofos embaixo dela (porque Bruno, graças a Deus, é mais neurótico do que eu). 
– Ela está sozinha? - Perguntei, querendo saber se Bruno estava com ela. 
– Está com a Babalu. 
Babalu é uma cachorrinha maltês fêmea, com olhos que parecem duas jabuticabas, branca feito uma bolinha de sorvete de creme que anda para lá e para cá atrás da dona: Minha filha. Esse foi o presente de Bruno para os seus 5 anos, uma cachorra que parece ser movida a pilha. Ele se sentiu no dever de alegrá-la depois que seu sapo (outro presente de Bruno, que não sabia dizer um “não”) morreu. Seu nome era Musgo, e no seu velório - cuidadosamente organizado por Valentina -, Hérica, Robert, Bruno e eu tivemos que prestar nossos sentimentos diante da sua pequena cova. Musgo permanece enterrado no jardim até hoje. 
Mas Babalu chegou, trazendo de volta toda a alegria de Valentina. Ela dá pelo menos dois banhos na cachorra por semana com o shampoo de pêssego. É uma compulsão, o que torna Babalu um pequeno pêssego feliz ambulante. Com um lacinho rosa na cabeça.
– Ah, certo… Mas você viu o Bruno?
– Não. Ele já não estava quando eu cheguei. Deve ter saído cedo. 
Fiquei com medo. Por que Bruno teve que sair cedo num domingo? Meu aniversário tinha alguma coisa a ver com aquilo, ou seu sumiço repentino não passava de uma coincidência? 
– Bom, tudo bem… Então eu v… 
– FELIZ ANIVERSÁRIO, MÃE! 
Fui quase arremessada ao chão por um golpe baixo (literalmente) de Valentina, que se agarrou na minha cintura como um carrapato assim que me virei para sair da cozinha. Ela tem uma incrível capacidade de ser silenciosa quando quer, e berrar como se eu fosse surda no momento seguinte. 
– Aaah, brigada! - Respondi feliz, abraçando-a de volta e me inclinando para baixo. Ela me deu um beijo efusivo.
– Peraí, Babalu! Eu tô falando com ela! - Valentina soltou em uma voz meio esganiçada, tentando fazer com que Babalu parasse de pular nas minhas pernas como se eu fosse um pedaço de carne mal passada. Ela queria me dar os parabéns também. 
– Oi Babalu. - Falei, achando graça. 
– MÃE, ESPERA AÍ!
E assim, do nada, Valentina saiu da cozinha correndo como se estivesse com dor de barriga. Babalu correu atrás dela. 
– Por que ela grita tanto? - Soltei.
– Não adianta. Ela não vai ouvir ninguém enquanto não pedir desculpas pelo menos dez vezes pra Babalu. - Emma falou calmamente, rindo da situação. 
Suspirei.
Encontrei um vaso e o enchi de água, colocando as flores nele. Quando ia sair para guardar meu desenho em algum lugar - e procurar por Bruno -, o telefone tocou.
– Alô? 
– Oi, querida! Feliz aniversário! Que você seja muito feliz! 
– Oi, Hérica! Muito obrigada! 
– Daqui a pouco estamos aí pra te dar um beijo pessoalmente! 
– Ah… Sim! Claro! É que eu acordei um pouco tarde, então talvez o almoço demore um pouquinho… - Comecei a correr pela cozinha, pegando algumas travessas na esperança de ajudar o trabalho de Emma a andar mais rápido. Ela bateu com uma colher na minha mão como se eu estivesse sendo mal educada. 
– Ah, eu posso ajudar vocês…
– Nem pensar! Você não vem pra comemoração do meu aniversário pra ajudar a arrumar as coisas! Onde já se viu?
Valentina entrou outra vez na cozinha saltitando com Babalu no colo. Aparentemente, as duas tinham feito as pazes. 
– Mãe!
– E qual o problema? Você sabe que eu gosto de ajudar… 
– Mãe!
– Pera um pouquinho, amor. - Falei carinhosamente para minha filha - Hérica, não precisa. Emma e eu damos conta do recado. 
– “Você” uma ova! - Emma replicou.
– Mãe! Babalu começou a pular nas minhas pernas de novo. 
– Valentina, sua cachorra tem molas nas patas? 
– Ok, ok. Eu levo a sobremesa então. - Hérica falou pacientemente - E não se preocupe se o almoço atrasar. 
– Mãe! 
– Ok, Hérica, obrigada mesmo! Um beijo!
– Mãe! 
Desliguei o telefone, virando para Valentina logo em seguida e cutucando-a da maneira mais insuportável a cada palavra: 
– Oi. Oi. Oi. Oi. Oi. 
Ela riu. 
– Viu como é chato? - Perguntei, colocando o telefone no lugar.
– É que você não me respondia… 
– Eu estava falando com a vovó no telefone. Agora pode falar. 
– É que o papai chegou. Ele pediu pra chamar você lá no jardim.
– Por quê? 
– O seu presente tá lá. 
Considerei sua resposta por algum tempo. 
– E por que ele não traz aqui? - Perguntei.
– Porque não cabe. - Ela riu. 
Congelei. 
– Oh-oh… - Emma soltou. 
Puta que pariu, Bruno…
– Vem! - Ela falou, agarrando minha mão e me puxando para fora. Segui com ela para o hall, já traçando planos de como castigar Bruno pelo que quer que ele tenha feito. Qualquer coisa grande o suficiente para não caber dentro daquela cozinha enorme o classificava como “culpado”. 
Quando chegamos no jardim, fechei os olhos lentamente e respirei fundo. Valentina soltou a minha mão e saiu correndo para o Mini Cooper preto estacionado na frente da garagem, com as portas abertas.
Um carro. Por que eu não tinha pensado naquilo? Era a cara de Bruno. 
– Não é legal? - Ela gritou para mim, a alguns metros de distância, entrando no carro e sentando no banco do motorista - Posso dirigir? 
– Não. - Falei, esfregando a testa e caminhando até ela.
– Por quê? - Ela perguntou decepcionada.
– Porque você precisa de carteira de motorista pra dirigir.
– Por quê?
– Porque sim. 
– Aaah… 
– Cadê o papai? - Perguntei, querendo assassiná-lo. 
– Não sei. Ele tava aqui…
Cretino. Deve ter se escondido. 
– Vou procurá-lo. Não deixa a Babalu entrar no carro, tá? 
– Tá. - Ela respondeu, se ajeitando no banco, segurando o volante e fazendo uma expressão meio psicopata. Por via das dúvidas, tirei a chave da ignição e levei comigo.
– Bruno! - Chamei no meu tom de voz mais puto, entrando em cada aposento daquela casa e me virando para procurar no próximo quando me dava conta de que ele não estava lá. Entrei na biblioteca, na sala e até na piscina. Emma me garantiu que ele não havia passado pela cozinha. Subi e continuei gritando pelo seu nome até chegar no nosso quarto. Entrei no banheiro e concluí que ele não estava lá. Ao me virar para sair e continuar minha busca, encontrei-o a um centímetro de mim, como um psicopata. 
Dei alguns passos tortos para trás com o susto até bater na pia de mármore. 
– Oi, amor. Feliz aniversário! - Ele falou calmamente, com um sorriso maníaco no rosto. Se eu não o conhecesse, poderia jurar que Bruno me esfaquearia naquele segundo e ficaria assistindo minha morte lentamente nos azulejos do chão - Gostou do presente? 
– Você lembra das minhas exatas palavras ontem de noite? - Perguntei, ignorando o fato de estar quase sendo espremida contra a parede. 
– Lembro sim.
– E quais foram?
– Você disse que não queria nenhuma lembrança de aniversário.
– Precisamente.
– E o que tem? - Ele perguntou, parecendo se divertir. 
– “Tem” que você concordou. 
– Sim. Eu concordei. 
Levantei as chaves do carro à altura dos seus olhos e as sacudi.
– Então que porra é esta?
Ele fingiu uma cara de espanto, como se tivesse sido verbalmente agredido. 
– Então você chama um carro de “lembrança”? Estou chocado. 
Me controlei para não esganá-lo.
– Bruno… 
– É muito mais que uma lembrança. É algo muito útil. 
– Eu… não sei… dirigir. - Falei pausadamente, articulando as palavras muito bem para que ele as entendesse.
– Já está mais do que na hora de aprender. 
Desejei ter um martelo de carne nas mãos para poder amassar seus dedos, um a um. 
– Vamos… - Ele continuou - Eu nunca te dei nada desse nível.
– Você queria me dar uma casa na Polinésia Francesa no ano passado! 
– E você não deixou! 
– Mas é óbvio que eu não deixei! - Minha voz começou a sair estridente - Se eu fosse deixar que você me enchesse de presentes, em três anos eu teria uma quantia boa o suficiente pra comprar o Taj Mahal e morar nele! 
– Mas você é mesmo exagerada. Eu te dei um carro. Grandes coisas. 
Respirei fundo e contei até três. Tentei me convencer de que estava exagerando. Ora, era só um carro.
– Ok, Bruno. - Fiquei em silêncio por algum tempo - Eu entro em uma auto-escola… 
– Eu posso arranjar a carteira de motorista se você quiser. Aulas de auto-escola são sempre tão chatas…
Encarei-o me perguntando se ele alguma vez ouvia o que eu dizia. Será que ele estava prestando atenção?
– Faça isso e eu arranco suas bolas, frito e dou pra Babalu comer. 
Ele fez uma cara engraçada de dor. 
– Você sairia perdendo se fizesse isso… 
Ele chegou ainda mais perto. A essa altura eu já estava praticamente sentada em cima da pia mesmo. 
– Não vai agradecer pelo presente? - Ele perguntou aproximando nossos rostos. 
– Pelo carro? - Arqueei as sobrancelhas - Não. Mas obrigada pelas flores.
– Não tenho nada a ver com isso. Foi coisa da Valentina. 
– Claro que foi. 
Ele riu de uma maneira doce. No fundo Bruno sempre soube que aqueles detalhes, aqueles pequenos atos e lembranças significavam muito mais para mim. Ele me conhece. Sabe que uma simples camélia arrancada de qualquer jeito do jardim de Hérica, com terra e tudo, ou uma noite de primavera que ele passe deitado na grama ao meu lado no nosso próprio jardim, valem muito mais do que qualquer joia ou qualquer presente. Valem mais porque simbolizam muito mais. Porque me trazem de volta memórias, e porque me mostram que o romantismo ainda está aqui, vivo entre nós dois.
Não só vivo como, ao que tudo indica, mais intenso. Se o nascimento de Valentina tinha nos afastado momentaneamente (o que estava dentro da normalidade, já que era exatamente o que acontecia com quase qualquer casal), seu crescimento nos deu a chance e o tempo de nos aproximarmos outra vez. Talvez fosse só uma impressão, mas parece que Bruno desenvolveu algum tipo de adoração esquisita por mim. Não que me assuste ou faça com que eu me sinta desconfortável - não MESMO -, mas é curioso e um pouco estranho como às vezes eu me sinto em algum tipo de pedestal. 
– Acho que está na hora de termos uma segunda lua-de-mel. - Ele falou bem baixinho, me beijando com delicadeza. Passei o braço em torno do seu pescoço. 
– E você acha que a sua filha não vai querer vir junto? - Perguntei esquecendo completamente de continuar puta com ele. 
– Nós deixamos ela com o Jackson na França e nos mandamos. - Ele abriu os olhos como se tivesse acabado de falar algo muito inteligente - Porra, eu sou um gênio! 
Sorri, beijando-o intensamente sem aviso. Por um bom tempo. 
– Vou comprar as passagens amanhã - Ele falou contra a minha boca, envolvendo seus braços na minha cintura e me puxando contra si - Austrália está bom pra você? 
– Ei, apressadinho. Temos que ver um monte de coisas. 
– Que coisas? Eu tiro férias, você vem comigo. 
Eu não voltei a trabalhar depois que Valentina nasceu. Aceitei desempenhar o meu próprio papel “Hérica”, o que, no fundo, era mais ou menos fácil. Minha vida passou a ser basicamente voltada para o objetivo simples de cuidar da minha família e fazer com que todos estivessem bem. Pode não ser um exemplo de autonomia e independência e todas aquelas coisas que muitas mulheres de hoje em dia têm como meta de vida, mas eu estou feliz. Feliz, do fundo do coração. E isso é o suficiente para me fazer entender que eu não preciso mudar. O que significa que eu realmente posso ir pra qualquer lugar com ele.
– Você é sempre tão prático… 
– Você devia ser assim também. 
Uma de suas mãos subitamente entrou nos meus cabelos e puxou meu rosto com força contra o dele. Sua língua simplesmente invadiu minha boca como se não precisasse ser anunciada. No exato momento em que minhas pernas se enrolariam na sua cintura por vontade própria, ouvi uma vozinha conhecida se aproximando. 
– Paaaaaaaaai… 
– Hmmmfff… Por que ela sempre faz isso nas piores horas? - Ele concluiu sem separar as nossas bocas.
– Porque ela é a nossa filha. É o papel dela. - Sorri. 
– Paaaaaaaaaaaaaaaaaaaaai… 
– OOOOOOOOOOOOOOOOOOI! - Ele respondeu com um tracinho quase inaudível de impaciência na voz. Antes que Valentina entrasse no banheiro de repente - porque às vezes ela simplesmente aparecia como uma assombração -, desci da pia e me afastei um pouco de Bruno. 
– Pai. - Ela falou, caminhando de maneira imponente banheiro a dentro. Simples assim, como se não estivesse sendo empata-foda de ninguém. 
– Pois não? - Ele respondeu, abrindo a torneira e fingindo lavar as mãos. 
– Eu tô aqui atrás.
– Mas meus ouvidos te escutam de qualquer lugar, princesa. - Ele respondeu, não podendo virar de frente de jeito nenhum. 
Valentina provavelmente perguntaria o que era aquilo grande no meio das calças dele, e então teríamos que começar a falar sobre sexualidade um pouco cedo demais com ela. 
– É a Babalu. - Ela falou.
– O que tem a Babalu? 
– Ela fez cocô no banco do carro da mamãe. 
Bruno fez careta e se contorceu ainda de costas, dando uns pulinhos e puxando a calça para frente. 
– O papai não disse pra você não deixar a Babalu entrar, amor? 
Valentina encarou o pai como se ele fosse um verme nojento, obviamente duvidando de sua capacidade intelectual. Ela sacudiu a mão, provavelmente achando que estava dizendo algo óbvio demais, podendo ser seguido de um “alo-ou?”:
– Mas eu não deixei. Ela me desobedeceu. 
Soltei uma gargalhada. Era esse tipo de atitude que fazia com que ela se transformasse a cada dia mais em uma miniatura perfeita de Bruno. Seu olhar de desdém é uma cópia do dele. Fora isso, cada pequeno detalhe na sua aparência remete a ele. O formato dos olhos, o nariz, a boca, o formato do rosto, os cabelos, as orelhas, as mãos… Tudo, absolutamente tudo é igual a Bruno. Bom, não tudo. O olho esquerdo não é. 
– Porra, Babalu! 
Babalu, que estava do lado de Valentina, inclinou a cabeça se perguntando o que Bruno queria com ela. 
– Pai! - Ela falou com os olhos esbugalhados em choque, colocando as mãos na boca - Você falou palavrão! 
– É, eu sei. - Ele falou, passando as mãos pelos cabelos e bagunçando-os mais - Não imite o papai. Ele é mal educado, e meninas educadas não fazem isso. E você é muito educada. 
– Sou. - Ela pontuou, claramente orgulhosa de si mesma. 
– Certo. - Bruno suspirou, pegando as chaves da minha mão - Eu vou limpar o seu presente.
– E eu vou tomar um banho e me arrumar. - Ri - Daqui a pouco seus pais estão aqui. 
– Você ouviu isso, Babalu? - Valentina falou em uma voz um pouco estridente - Daqui a pouco os convidados estão aqui e nós não estamos arrumadas! 
– Claro que estão. - Bruno se meteu - Vocês estão lindas. 
– Pai, eu tô de pijama.
– E qual o problema?
– O Rafael não pode me ver de pijama. 
Rafael é o melhor amigo de Valentina. Eles se conheceram na escola, e desde então não se desgrudaram mais. Sempre que os vejo juntos eles estão brigando, mas um não vive sem o outro. Na maioria das vezes Valentina o acha bobo: “Ele é um menino. Meninos são bobos”. Mas, no fundo, eu acho que ela gosta quando ele implica. 
– “Rafael” quem? - Bruno perguntou. 
– É o amiguinho dela. - Expliquei - Ele estava viajando e não pôde vir dar os parabéns a ela no dia certo, mas chegou hoje. Achei melhor convidá-lo pra vir ver Valentina. Bruno olhou de mim para ela desconfiado. 
– De onde vocês se conhecem? 
– Da escola. 
– Como ele é?
– Bobo. 
– Quantos anos ele tem? 
– Seis. 
Bruno me encarou com uma expressão preocupada. 
– Vou prestar atenção nesse cara. 
– Não seja ridículo. - Falei a ele.
– Não estou sendo. Homens são uns - e parou de emitir som, apenas gesticulando com a boca - “filhos da puta”. 
– Ele tem seis anos. Seis! 
– Ele vai crescer. 
Suspirei. Valentina olhava para nós dois como se não estivesse entendendo nada. 
– Ele é uma gracinha, Bruno. - Falei de maneira firme, querendo pôr um fim àquela conversa - Minha intuição diz que vocês vão se dar muito bem. 
– Certo. - Ele respondeu completamente cético, como se eu estivesse bêbada.
– Mãe, posso usar um batom seu? 
– Não, não pode. - Bruno falou, tentando não ser seco com a filha - Você já é linda. Agora vamos limpar o que a Babalu fez no presente da mamãe. Valentina suspirou sem entender, e quando Bruno saiu ela foi atrás. Mas antes de deixá-la ir, segurei-a pela mão e a puxei para perto da minha boca, falando bem baixinho ao seu ouvido.
– Já deixei um bem clarinho na sua gaveta. Só não deixa o papai saber.
Minhas festas de aniversário nunca eram feitas em boates ou clubes ou casas de festa. Minhas festas de aniversário se passavam sempre com a minha família, e por mais que Bruno achasse isso um pouco deprimente, eu discordava. Talvez, se estivesse na minha pele, tendo passado pelas perdas que eu passei, ele conseguiria entender o porquê daquilo ser a minha diversão particular. Não significava dar mais ou menos valor às pessoas: Era simplesmente ver as coisas de jeitos diferentes. 
Esse aniversário não foi diferente. Uma reunião familiar na sala de estar da minha casa foi o suficiente para me deixar alegre. Robert passou um bom tempo conversando coisas de trabalho com Bruno. Hérica aprendeu pelo menos umas três brincadeiras diferentes com Valentina, que só largou a avó quando Rafael chegou com os pais. A presença do menino também chamou a atenção de Bruno que, numa atitude incrivelmente “madura”, resolveu usar aquela camisa ameaçadora que Diego deu a ele há mais ou menos cinco anos atrás. É claro que ele sabe que, primeiro, Rafael não entende francês, e que segundo, mesmo se entendesse, ele não daria a mínima. 
Mas tenho que admitir que seu ciúme idiota me divertiu. Foi impagável a cara que Bruno fez ao saber que a filha e o amiguinho estavam brincando na casa da árvore, tendo Babalu como única companhia. Ele passou a festa inteira indo lá oferecer brigadeiro aos dois, obviamente com o intuito de se certificar que Rafael não estava molestando Valentina. Os pais do menino, Graças a Deus, não notaram como meu marido é estranho. 
Depois do bolo, de alguns copos de refrigerante derrubados e de um joelho mais uma vez ralado na terra (porque “Pique-pega é divertido, mãe!”), o dia terminou. Recebi os votos de felicidades de todos que eu amo, e isso foi o suficiente para me fazer feliz.

São 22h. Valentina está apagada na cama há algum tempo, e parece que só vai acordar amanhã. Bruno está lá dentro arrumando as coisas sozinho, já que Emma já foi embora. E eu estou aqui no jardim. O céu está muito escuro, o que faz com que as estrelas estejam brilhando mais do que o normal. É um bom cenário pro meu jardim encantado. Faz com que ele fique ainda mais bonito, me dá uma atmosfera boa para pensar. Às vezes eu simplesmente penso.
Penso em tudo que aconteceu nos últimos anos. Penso em como pode uma vida mudar da água pro vinho, quase como mágica. Penso que tudo pelo qual eu passei antes dele chegar na minha vida, por mais doloroso que tenha sido, é agora só uma lembrança. Não importa. Quero manter meu passado, mas não para lembrar da dor que já se foi. Quero guardar dele o fato de que um dia eu subestimei o poder dos contos de fadas e quebrei a cara. E que foi o meu príncipe encantado o responsável por me ensinar isso. Meu segredo está guardado. Vai continuar assim por muito tempo, talvez para sempre. Um dia, quem sabe, eu me sinta preparada para contar. Mas é ainda inconfessável. Por enquanto é. Por enquanto só ele sabe, e acho sinceramente que só ele deva saber. Talvez por enquanto. Talvez para sempre. Mas eu estou bem. Definitivamente bem. Estou pensando no dia de hoje, na minha família e nele. Venho pensando muito nele.
Estou pensando em quanto tempo vai ser preciso até que ele note que eu não estou lá dentro e venha me buscar aqui no jardim. E quando ele fizer isso, estou pensando em como dar a Bruno a notícia de que ele vai ser pai de novo. 
Dessa vez, de gêmeos.

FIM

De repente, Amor.Där berättelser lever. Upptäck nu