Ouço murmúrios e gemidos confusos, e só então relembro que Garath está aqui em casa com minha mãe. Só não compreendo o motivo desse barulho na parede, nem porque eles gemem tanto enquanto sussurram coisas um para o outro. É difícil compreender os assuntos dos adultos, nada faz muito sentido. 

Um tempo depois, tudo volta a ficar silencioso. Não há mais ruídos contra a parede e também não ouço a voz de nenhum deles. 

Inspiro baixinho e volto a dormir. 

***

Dias atuais 

Kate 

Os dias são cinzentos agora. Tudo parece igual para mim quando observo as coisas à minha volta. O sol parece não brilhar ao meio dia, a lua não aparece ao cair da noite. Estou tão perdida… 

Observo minhas mãos trêmulas à medida que levo os dedos ao teclado do computador. Fico parada por alguns instantes, observando as palavras que escrevi há um tempo: As mil partes de um coração partido. Só então volto a digitar e pouco a pouco o texto toma a tela. 

Escrever foi a melhor maneira que encontrei de tentar amenizar a dor que sinto no coração, após tudo o que aconteceu no hospital psiquiátrico. É através da tela de um computador que materializo a saudade, a tristeza e o desamparo que senti e ainda sinto. São momentos de desabafo entre mim e a máquina, no qual relato a angústia de perder uma filha e ter de continuar acordando todos os dias pela manhã. 

O livro ainda não possui um título oficial. Eu apenas escrevo um capítulo após o outro e assim ocupo meus dias. 

Passo horas assim, até que sinto as pernas adormecerem, e decido caminhar um pouco no quintal para colocar os pensamentos em ordem e fazer o sangue circular.   

São quase 16:00h, em menos de duas horas minha mãe voltará para casa após o expediente de trabalho. Nossa relação continua fria como sempre. Poucos são os assuntos que falamos, mas também não destratamos uma à outra. Apesar de tudo, compreendo o motivo que levou minha mãe a decidir que eu não deveria ficar com a bebê. Ainda não estou bem psicologicamente, há noites em que não consigo pregar os olhos, minhas mãos suam, o coração falta sair pela boca. As crises de pânico são constantes e nossa vida financeira não é das melhores. Minha mãe ganha o suficiente apenas para pagar as contas, incluindo o plano de saúde. A comida às vezes falta, mas vamos passando como dá. Realmente, não havia muita alternativa para mim e aquela garotinha ficarmos juntas, por mais que eu quisesse. 

Suspirando, eu me levanto da cadeira e me afasto da mesa gasta que comporta o computador antigo.  É neste momento que ouço o toque do telefone fixo, e paro onde estou. Meu coração acelera a níveis alarmantes, sinto o suor brotar em minha testa, minhas mãos gelam. 

Tenho essa mesma sensação sempre que o telefone toca ou a campainha é acionada. Não consigo explicar, é como se meu corpo sofresse antecipadamente pela possibilidade de alguma notícia ruim chegar até mim. Há também o medo e o receio de se tratar de Angelina, a amiga que eu traí quando morávamos em um convento nas montanhas ao norte de Nova York. 

Desde que tudo aconteceu, não consegui falar com ela ou olhar em seus olhos. Eu preferi fugir e me acovardar, exatamente como sempre fiz: sou uma covarde que faz de tudo para não encarar os problemas. 

Eu não me orgulho de nada. Não me orgulho de ter abandonado Angelina sem ao menos me redimir com um pedido de perdão. Eu não me orgulho de quem sou ou de quem me tornei, e é por isso que ouvir a voz dela é tão difícil. Falar com ela é o mesmo que reviver tudo centenas de vezes. Dói na alma. 

Finalmente a chamada é encerrada enquanto permaneço parada no mesmo lugar, os pensamentos voando em meus devaneios. 

Sem pensar muito, saio em direção a porta dos fundos até o quintal, e solto o ar que estava preso em meus pulmões. Levo a mão ao peito e massageio devagar, observando alguns vasos com plantas secas que estão abandonadas em um canto nos fundos de casa. 

O vento fresco toca o meu rosto, trazendo até mim o cheiro calmante da maresia. Está um clima agradável aqui fora. As praias provavelmente estão lotadas de turistas agora, aproveitando o calor californiano. 

Caminho um pouco, analisando a decadência de tudo. Desde o quintal abandonado à própria sorte, a minha vida que ainda não tem um rumo. 

Mais plantas secas estão empilhadas em outro canto, caídas uma em cima da outra, algumas com os caules já apodrecidos e quebrados sobre a terra. Eu nem sequer me lembro da última vez em que molhei algumas delas. E minha mãe, bom, ela nunca tem tempo. 

Cansada de tudo, resolvo retornar para dentro e voltar a escrever. Passo pelo telefone sobre o balcão da cozinha e noto a luzinha vermelha piscando, indicando que há uma nova mensagem de voz não ouvida. 

Penso em ignorar como sempre faço, mas ao mesmo tempo estou tão cansada de tudo. Cansada de fugir, de continuar sobrevivendo em vez de ao menos tentar viver. Minha cabeça está uma verdadeira bagunça. 

Eu me aproximo do balcão e me recosto por alguns minutos. Fecho os olhos, e ainda assim, continuo vendo a luz pelo subconsciente. 

Forço as pálpebras a se abrirem e aperto o botão para ouvir a mensagem. A voz dela entranha-se em meus sentidos como o sangue que corre em minhas veias. Tudo em mim se desestabiliza. 

— Kate… — Alguns segundos de pausa, e então ela continua: — Kate, sou eu, a Angel. Eu… eu só queria dizer que sinto muito a sua falta. Eu sei que você não quer falar comigo, mas saiba que penso em você todos os dias e oro muito também. — Angelina faz uma pausa, mas posso ouvir sua respiração agitada. — Tenho tanto para dizer, Kate… Muitas coisas aconteceram desde que você foi embora. Eu tenho um pai que nem sabia que existia, ele se chama Andrew. Mas imagino que você já saiba disso, não é? — Pelo silêncio que se faz presente do outro lado, concluo que Angel está tendo dificuldade para continuar a falar. Ela suspira profundamente e sei que está segurando o choro.— Alex e eu iremos nos casar em alguns dias. Eu gostaria muito que viesse. Vou deixar o endereço da capela e meu número de telefone. Também deixarei o endereço da minha casa em Nova York. — Ouço o que ela diz com atenção, sentindo toda a tensão se apoderar de cada músculo do meu corpo. — Eu te amo Kate, fique bem. — E tudo volta a ficar em silêncio. 

Não sei bem o que estou pensando quando pego uma caneta e papel, e volto a ouvir a mensagem. Anoto os endereços e o número de telefone de Angelina, em seguida me encaminho até a mesinha do computador e me sento. 

Com as mãos trêmulas, releio tudo que anotei, mesmo sabendo que de nada adianta ter o endereço dela em mãos. Angelina está em Nova York, e eu na Califórnia. São mais de 4 mil km de distância uma da outra. Além disso, não sei se tenho coragem de voltar a falar com ela. Durante todo este tempo rejeitei suas ligações e qualquer outra maneira de reaproximação. Era vergonhoso demais admitir que meu cérebro sofreu um colapso e eu passei meses da minha vida alternando entre uma clínica psiquiátrica e a casa que um dia jurei nunca mais retornar. 

Depois de reler as anotações pela quinta vez, dobro o papel e guardo dentro de um caderninho que uso para rascunhar ideias aleatórias, imaginando se algum dia eu voltarei a revê-la ou se a amizade que cultivamos por tantos anos está destruída. 

As palavras de Angelina não saem da minha cabeça, e eu as repito em silêncio incontáveis vezes: Eu tenho um pai que nem sabia que existia. Ele se chama Andrew. 

Recordo-me vagamente da minha mãe falando sobre o assunto algum tempo depois que descobri a gravidez. Angelina ligava frequentemente, mas eu nunca falei diretamente com ela. As informações que eu tinha, eram algumas poucas que minha decidia compartilhar.

O que vocês acham que vai acontecer?

A gente se lê no próximo sábado. Boa semana a todos. Grande beijo.


MEU FEDERAL ( Spin-off do Best-seller PECADOR)Unde poveștirile trăiesc. Descoperă acum