Capítulo 2 - O Velho e a Cobra

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        A primeira coisa que Ikarus viu foi um senhor de cabelos brancos e encaracolados

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        A primeira coisa que Ikarus viu foi um senhor de cabelos brancos e encaracolados. Ele usava a ponta de uma caneta para coçar a barba espessa, seus olhos fixos em uma planilha que segurava em mãos. Parecia extremamente concentrado e talvez assim o estivesse, já que ignorava a presença do menino à sua frente.

        Desorientado, Ikarus percebeu que ele e o velho estavam sozinhos sobre um pedaço de mármore circular, mas nada além disso podia ser visto. Ao redor deles existia um breu enorme, a escuridão era tal qual a da floresta à noite. De forma estranha, tudo sobre o mármore era perfeitamente visível, parecendo receber uma iluminação própria mesmo sem haver fontes de luz por perto.

        O velho se mexeu com desconforto sobre a pedra em que estava sentado. A túnica branca que vestia deslizou alguns centímetros. Ikarus desviou os olhos a tempo de evitar ter de encarar o mamilo do sujeito, porém acabou tendo uma visão ainda pior.

        Ikarus, também sentado em uma pedra, olhou para baixo esperando ver patas castanhas e cascos. No entanto, o que ele viu foram pernas humanas vestidas em calças bege.

        Como era de se esperar, ele gritou. Esperneou. Apalpou as pernas e, depois de constatar que eram de verdade, gritou mais ainda. Olhou para o velho, buscando qualquer sinal de ajuda, mas ele encarava em silêncio um ponto no chão. Ikarus seguiu os olhos azuis do velho e enxergou (por favor, que isso seja um sonho) uma enorme serpente perto de suas pernas.

        Ikarus decidiu que sair correndo e se atirar no breu seria uma opção mais viável do que ficar próximo do animal mortífero. Infelizmente, uma das coisas que ele não havia aprendido em seus poucos anos de vida era caminhar em duas pernas. Assim que se levantou, Ikarus tombou como um livro pesado, caindo de cara no chão.

        Com metade do rosto esmagado no mármore, ele viu o velho ficar de pé e estender a caneta à sua frente. A caneta se alongou, mudou de cor e de textura para um marrom-madeira, e tornou-se tão alta quanto o homem que a empunhava.

        O velho bateu a caneta/cajado no chão. A serpente ziguezagueou ao seu lado, Ikarus sentiu um frio na barriga ao ver a língua do animal balançar no ar. Ela se enroscou na base do cajado e subiu em espiral até o topo, exibindo todo o comprimento de seu corpo esverdeado.

        — Não é muito fã de cobras? — o velho perguntou, ignorando o rosto da serpente a centímetros do seu.

        Ikarus, estatelado no chão, gemeu em resposta.

        O velho fez um estranho movimento com o cajado e tornou a se sentar. Ikarus sentiu seu corpo flutuar e voltar à posição original sobre a pedra. Apalpou as pernas novamente, ainda sem acreditar, enquanto o velho lia em voz alta sua planilha.

        — Ikarus Pata-Dourada, primeiro do seu nome, obrigado por utilizar o nosso serviço de troca de corpo entre mundos. — O velho não parecia nem um pouco agradecido. Continuou lendo de forma preguiçosa: — Ainda que sua vida tenha sido breve, suas contribuições foram bem úteis à nossa sociedade. Aproveite a nova...

        — Espera aí! — interrompeu Ikarus. — Troca de corpo? Vida breve? Eu não morri!

        A cobra emitiu um sibilar breve que o fez prender a respiração.

        — Morreu, garoto. — O velho suspirou. — Deixa eu terminar de ler que você vai entender.

        — Não, deve ter havido um mal-entendido. Escuta velh... Senhor... Qual o seu nome?

        — Asclépio — ele respondeu com indiferença, sem remover os olhos do documento.

        — Senhor Asclépio, eu comi uma maçã, uma maçã vermelha. Sei que é estranho, mas tenho certeza de que ela não estava envenenada e de que eu estou vivo, só não sei explicar como eu sei.

        — Ah, encontrei! — Asclépio exclamou. A serpente esticou o pescoço para a planilha, porém o velho ergueu o cajado sem notar. — Não preciso perder meu tempo com você, menino. Você terá uma troca de corpo, mas sua alma perderá todas as memórias da vida passada, logo não lembrará de nada do que eu disser.

        Asclépio bateu o cajado no chão novamente, a serpente desceu e deslizou em direção a Ikarus. Ele tentou se mover, entretanto seu corpo não respondeu. Sentiu a cobra subir por suas pernas humanas e se enroscar no seu torso.

        — Não! — Ikarus gritou. A cobra deslizou por seu rosto e tapou sua boca.

        — Você ainda terá suas memórias por... — Asclépio consultou a planilha — cinco minutos. Tenha uma boa vida!

        Ele sentiu as escamas da cobra roçando em sua pele, apertando-o com força. Contudo, ao contrário do medo que sentira minutos atrás, agora ele estava calmo e sonolento. As escamas da serpente detinham um encantamento que o inundava em uma sensação de paz e serenidade.

        Ikarus fechou os olhos e sentiu como se estivesse adormecendo em uma grama macia e confortável, sob um sol quente e acolhedor.

        Ikarus fechou os olhos e sentiu como se estivesse adormecendo em uma grama macia e confortável, sob um sol quente e acolhedor

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𝙄𝙠𝙖𝙧𝙪𝙨 𝙚 𝙖 𝙈𝙖𝙘̧𝙖̃ 🍎 (ᴄᴏɴᴛᴏ)Where stories live. Discover now