I

17.9K 642 278
                                    


" Existe algo muito particular nesta floresta. O tom azulado das folhas são apenas um detalhe visual do que é esta maravilha incompreensível da natureza. Os frutos, também azuis, são a fonte de alimento de toda a fauna aqui presente. Admito que arranquei uma amostra para estudar, e no momento em que o fiz, quase que imediatamente outra surgiu em seu lugar. Não bastasse isso, as espécies de animais encontradas aqui são totalmente diferentes das que temos registros.

Entretanto, o que mais me chamou a atenção foi a sensação que esta floresta me passou. Durante praticamente toda a minha estadia me senti observada, porém não no sentido de um caçador esperando o momento certo de dar o bote na presa, mas sim de estar protegida, resguardada de um mal maior que assola não só a mim, mas a todos que compartilham ou compartilharam algo com a floresta.

É notável que os conflitos bélicos e o uso descontrolado de magia vem causando estragos irreparáveis ao meio ambiente ao longo dos anos, mas por alguma razão esta floresta ainda se mantém em meio a reinos que vivem em confronto. Talvez seja uma nova esperança, uma esperança que abdicou da sua tradicional cor verde e passou a ter um azul, que em tempos de tanto caos e destruição veio trazer serenidade, tranquilidade e harmonia como forma de resistência. "

Sercsenia Wext, Enciclopédia de geografia e botânica XI.

I

Das águas doces do rio, coberta de pétalas azuis, surgia a figura mais comum do mundo e incomum ao mesmo tempo. Apesar do corpo humano, Morgana não possuía um coração, pelo menos não dentro de si. Sua aparência, familiar para qualquer homem ou mulher, ocultava o misterioso interior onde em lugar de sangue o que corria por suas "veias" era água.

Todos os animais da floresta decidiram presenciar o resplandecer do espírito da Floresta Azul, que nascera livre de qualquer valor moral ou ético da humanidade, do ódio, do amor ou de qualquer outro sentimento humano. Morgana, a filha de todos os animais e todas as plantas, era a natureza em sua mais plena forma, maravilhosa como uma flor, misteriosa como as estrelas, pacífica como um pôr do Sol e devastadora como um tsunami.

Seu corpo era perfeito para viver na selva e não demorou muito tempo para aprender a se virar por conta própria. Aprendeu a ser rápida como os jaguares, a ser inteligente como os macacos, a ser forte como os ursos e a ser livre como os pássaros. Tudo estava ao seu alcance, e eventualmente, Morgana se tornou a líder da floresta, fornecendo todos os recursos necessários para que a mesma pudesse abastecer a vida que continha em si. Cada vez mais o azul tomou conta de paisagens antes desertas. Por onde Morgana caminhava, a vida surgia em sua forma mais pura.

Com o crescimento do lar de Morgana o encontro com a humanidade se tornou algo inevitável. Um grupo de soldados formado por três homens e uma mulher decidiram adentrar no templo natural, atraídos pelo desconhecido mundo das folhas azuis e em busca de um refúgio imediato.

Os quatro se aproximaram, banhados em um líquido escarlate e viscoso que percorria desde seus rostos até suas pernas, deixando as armaduras em um tom mais escuro. A guardiã da floresta, em sua inocência, recebeu o grupo de braços abertos. Ela não sabia como, mas entendia perfeitamente o idioma que falavam, era como se alguma voz dentro de sua cabeça lhe ensinasse aquele dialeto tão complexo e diferente do que escutava diariamente.

O desgaste físico e emocional dos militares era tanto que mal repararam na forma de se vestir da anfitriã. Tinha uma espécie de vestido formado por folhas e flores espalhadas irregularmente pelo corpo e cordões e colares de pedras e conchas do rio. Morgana, em contrapartida, estranhou a vestimenta dos visitantes, mas preferiu deixar a pergunta para outro momento quando já estivessem recuperados.

Em vez disso, ofereceu alimento aos famintos convidados. Trouxe uma cesta improvisada com uma enorme quantidade do típico fruto da floresta, azul como o resto dela, o mesmo alimento que mantinha a vida de todos os seres vivos ali presentes. Os guerreiros aceitaram sem pensar duas vezes, porém apenas um deles decidiu comer enquanto os outros, exaustos, preferiram dormir.

- Por quê não dorme junto de seus companheiros, viajante? - perguntou Morgana, curiosa. Estava acostumada a dormir com a matilha de lobos, onde todos dormiam ou nenhum.

- Alguém precisa ficar acordado para vigiar. Alguma besta pode aparecer. - disse o homem, que estranhou a ingenuidade de alguém que aparentemente vivia na natureza. Entretanto, não fez nenhum comentário, pois estava se deliciando com o fruto azul.

A resposta arrancou uma risada do espírito da floresta.

- Não há nada com o que se preocupar, aqui a vida de todos tem o mesmo valor, então os animais jamais iriam te atacar. A floresta te protegerá de qualquer ameaça - explicou com o seu simpático sorriso.

- Hum, um lugar sagrado? Não conheço nenhuma divindade que tenha um lar como este. - disse o homem, sem se importar muito pelo que acabara de escutar. - E o que faz por aqui, belezinha? É uma cultista dessa divindade ou algo do tipo? - perguntou o guerreiro com malícia no olhar, malícia que Morgana não tinha.

- Moro aqui, faço parte deste lugar assim como ele faz parte de mim. - disse o espírito.

- Uhum, e o que acha de me mostrar o que tem por debaixo dessa sua roupa toda natural, tão bonita por sinal. - o homem cada vez mais se aproximava da jovem.

- Tudo bem. - Morgana tirou o vestido sem questionar. Para ela, o viajante apenas se interessava por aprender mais sobre aquele lugar mágico.

Assim que se despiu, mostrando a sua verdadeira natureza, o homem que a observava com maldade se assustou ao ver que ela não possuía as genitálias. O corpo tinha apenas o formato humano, nada além disso.

- Que porra é essa!? - disse assustado enquanto jogava a "garota" no chão e atirava longe sua vestimenta.

Pela primeira vez Morgana se sentiu ameaçada, estava em choque. Pela primeira vez a floresta havia deixado de ser o seu templo sagrado.

- Foda-se! Vou abrir um buraco entre as tuas pernas se for preciso! - o abusador sentia o êxtase da batalha mais uma vez, o mesmo desejo violento daquela frenética e sanguinária manhã percorria o seu corpo.

Assim que sacou sua adaga e a colocou sobre a virilha de Morgana, sentiu um formigamento que ia desde seu estômago até a boca. Da boca do sujeito surgiram inúmeras aranhas que rapidamente se espalharam pelo seu rosto, comendo seus olhos, sua pele e seu couro cabeludo. Uma serpente explodiu as suas tripas, atravessando a barriga e entrando de volta por outros orifícios. A cena era grotesca e de uma violência que nem o próprio soldado havia vivenciado em suas inúmeras batalhas.

O que tanto um quanto o outro não sabiam era que o fruto azul tinha apenas um propósito: dar vida à floresta. Por tanto, se aquele que o consumisse, de alguma forma fosse uma ameaça, o fruto então alimentaria a floresta com a sua morte.

Morgana, pura até então e sem entender o porquê da maldade do homem e o motivo de sua morte, começou a chorar. Suas lágrimas brilhavam. Onde as gotas caiam brotavam flores, plantas e árvores que embalsamavam o corpo do violentador, transformando este em alimento para o templo azulado. A natureza era a única capaz de fazer algo horrível se transformar em algo tão belo.

Tristeza, medo, ansiedade. Pela primeira vez o espírito da floresta sentiu tais emoções. Como se não bastasse, a gritaria havia acordado os companheiros do soldado, que imediatamente foram ver o que acontecia.

Terminada a cena que jamais imaginaram presenciar, a mulher do grupo, incrédula, gritou enquanto sacava sua espada:

- A BRUXA FILHA DA PUTA MATOU O MEU MARIDO!

Em menos de um segundo os dois homens restantes e a viúva começaram a perseguir a assustada e indefesa figura. Esta por sua vez, disparou para fora de seu lar, mas não por pensar que ela corresse perigo mas sim aqueles que lhe queriam atacar. Morgana era pura. Depois de anos ali confinada no lugar onde a paz reinava e a natureza fazia o seu trabalho, o espírito precisou fugir. Não havia mais nenhum lugar seguro. Assim então nascia Morgana, o espírito da floresta que aprendeu a ser humana da maneira mais desumana possível.

MorganaWhere stories live. Discover now