O Outro que Habita em Mim

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As lâmpadas dos postes, amarelas, refletiam sua luz tremeluzentes na superfície molhada das ruas, inquietas e anônimas. Os pingos da chuva, batendo no rosto eram como dardos finíssimos e frios, despertavam sonhos, alimentavam angústias. Em noites assim, a realidade parece ainda mais brutal, incompreensível. Pareciam lágrimas os pingos da chuva que rolavam pela face.

O vazio que sentia do peito à alma era um punhal de gelo, agudo. A solidão era o que mais doia naquele velho-novo mundo cheio de sombras invernais permanentes que se revelavam diante de seus olhos. A enxurrada lustrava o negro asfalto que recobre as pedras do centenário calçamento e as histórias que já não são. Sarcástica riqueza, símbolo da ignomínia humana. Era  o que lhe diria o seu velho professor, imaginou sentindo os pés congelando dentro dos tênis de nylon Made in USA.

Não havia estrelas no céu. Claro, chovia à cântaros. A natureza parecia querer lavar até o podre das almas dos homens. Havia, porém, algo diferente no ar. Ergueu os olhos das sombras que projetavam os fantasmagóricos casarões da Rua do Meio e farejou a brisa úmida e fria. Ao cheiro da água que jorrava do céu se misturavam apenas os odores nauseantes de lixo, urina e ratos.

Os becos escuros e vielas estreitas do centro eram abismos em que mergulhava de cabeça. Fugia apressado do inevitável, acelerando o passo no sem rumo da vida. A chuva escorria em cascata reluzente de seus cabelos. Era inútil a fuga. Ninguém escapa de si mesmo. Nunca. Desde sempre, sabia que o precipício que o engolia era sua própria consciência de que nada era diante da imensidão deserta em que habita.

Como um gato arisco, observava os claros-escuros da noite, pressentindo o movimento inefável e sutil do destino no chiar manso da chuva, no uivo do vento nos fios da rede elétrica, nas cumeeiras das casas em cada esquina, entre os galhos e folhas das árvores. O cenário noturno da cidade sob chuva por onde vagava lhe parecia saído de um filme trash de terror. Era como se dos centenários e decrépitos casarões, mil olhos de fantasmas observassem seus passos. Sentou-se no meio fio. A chuva, com sua voracidade, lambeu o seu corpo inteiro como uma predadora que sabe ter a presa indefesa entre suas garras. Fitou o céu prenhe de nuvens de chumbo e um sorriso se desenhou em seus lábios de cadáver insepulto.

A noite é bela e tem seus encantos, ainda que sombrios. Tantos quanto se tenha sensibilidade para os perceber. O que faria, com certeza, se não estivesse preso a tão profunda depressão e autocomiseração. Pensava em tudo o que foi a sua existência até alí e concluiu que era um perdedor. Nulidade absoluta.

Novo demais, nasceu tarde para viver os "Anos Dourados", época em que ainda estava nos testículos do pai que não conheceu. Nos loucos e libertários Anos 60, jogava bolinha de gude, pescava e nadava nos rios e córregos de seu quintal e soltava pipa enquanto jovens de sua idade, nas grandes cidades, faziam passeatas contra a ditadura, enfrentavam a cavalaria, os cacetetes, fuzis e tanques da polícia e do exército; eram presos, torturados, mortos ou entravam na clandestinidade, pegavam em armas, faziam sexo e apostavam corridas de lambretas, bebiam cuba libre e discutiam as revoluções em Cuba, China, União Soviética e as democracias burguesa e popular. Não foi sequer um dos últimos hippies que nos anos 70, que perambulavam à margem do sistema por trilhas nas matas, serras, praias e vales em busca de recantos que fossem dignos de se tornarem sagrados. Perdeu tudo o que de bom as duas últimas décadas poderiam lhe ter dado para significar sua vida. Não fez nada de importante ou minimamente significativo até alí com sua vida errante. Não viveu. Vegetou apenas. Feito inanimado ser. Inútil.

Um calafrio percorreu sua espinha. Olhou para um lado e para outro. Nada viu. Apenas ouviu os passos na rua encharcada de lama. A chuva caindo em cascatas finas pelas biqueiras das casas reproduzia sons de cachoeiras. Um vulto esgueira-se junto às paredes, quase fundido com as sombras. O vulto se aproximou até quase tocar-lhe o ombro esquerdo. O silêncio e o vazio são maiores que a abóbada que verte água sobre o mundo.

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⏰ Last updated: Feb 03, 2020 ⏰

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Punhal de Dois GumesWhere stories live. Discover now