O Chamado

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- Eu me chamo Janeiro e não, isso não é um SONHO

Aruim debruçou na cabeceira da cama, quase derrubando o despertador. O olhar desnorteado, procurando algum sentido no que acabava de enxergar: aquele homem com seis fios gigantes de um bigode felino, vestido daquele marrom clássico dos anos 60. Embora o corpo ereto, como um humano, só podia ser um sonho. 

- Fala comigo, sonho? - Aruim contornou o lábio em ironia. - Não sabia que os sonhos eram tão invasivos. Não parece nem um pouco envergonhado de me ver seminu. 

Janeiro, que se sentara sobre algumas caixas de cucos, de frente à janela que dava ao luar, pigarreou tomando a palavra. 

- Corrigindo: eu não sou um sonho. E posso dizer que poderia estar completamente nu, ainda assim eu não sentiria o mínimo de pecado. Sou Janeiro, emissor da verdade, vim para dar-lhe a noção do que o TEMPO é. Também sou, por muitos, chamado de Jano das Duas Faces, Enki o Leão Alado, além de infindáveis nomeações... Mas por este momento, usaremos Janeiro, se não lhe incomodar. 

- Mas é claro que não, vossa senhoria tome a decisão que for necessária. - com uma engraçada reverência, Aruim dispôs-se até a jarra de água que estava na cômoda e salpicou o rosto tentando despertar daquela loucura. Ao atentar que aquela figura ainda estava ali, estática sobre seu conjunto de relógios, em seu quarto escurecido, deu um salto sendo amparado pela parede, que não o permitira cair. 

- Acho que não pode esconder muito bem o Leão Alado... - Aruim fez um gesto como se puxasse os bigodes, caçoando de Janeiro. 

- Não entendo. 

E ele realmente não entendia. Aruim então sorriu deliberadamente, ainda com a pulsante ideia de que nada daquilo pudesse ser real. De súbito atentou a janela e a porta, misteriosamente fechadas, intocadas e ainda com o pequeno sistema de alarme, o qual sempre acionava antes de dormir (era uma pessoa sozinha e precavida demais para esperar que somente uma fechadura pudesse barrar um criminoso). O sistema de sinos, linhas e o spray de pimenta estavam intactos. 

- Disse que tem a obrigação de me mostrar o que é... o tempo, mas creio que sua real obrigação é falar como entrou em minha casa, Senhor do Tempo! 

- Janeiro. 

- Oi? 

- Janeiro. Pode me chamar de Janeiro. 

- Ah, sim. Como queira... Janeiro. 

- Sou algo aquém da matéria e do próprio imaterial, meu jovem relojoeiro. Portas e trancas não me impediriam de entrar em nenhum lugar, nem mesmo em seus sonhos, o que, por certo, não é o caso. Isso é mais real do que a ignorância dos homens. Minha missão era de encontrar, e mostrar o real significado do tempo para um de vocês... 

- E esse cara sou eu? - a afirmativa do homem só fez crescer o DESESPERO que o consumia. - Bom, obrigado pela consideração, mas não posso ser essa tal pessoa. Sei o que preciso saber sobre o tempo. Sei que ele é dividido em anos, meses, dias, horas, minutos... Pura matemática. Nada que o mínimo de LÓGICA não possa solucionar... 

Aruim ficou a encarar o senhor de roupas bem alinhadas, como que suplicando que sumisse dali e devolvesse o seu tão merecido sono. Contudo ele se manteve no mesmo lugar, com o sorriso lhe esticando os bigodes agulhados. Estava claro, que o que quer que fosse aquela figura, não iria embora sem cumprir sua missão. 

- Ok, eu... eu preciso de um chá. Siga-me. Tomemos um chá! 

Aruim se recompôs com uma calça fina e blusa com gravuras de cucos, ponteiros e dígitos de horas. Desistiu da toca de ampulheta ao perceber o olhar irônico de Janeiro, que aparentemente não era material nem imaterial, mas sabia caçoar das pessoas. 

O Emissário do TempoOnde as histórias ganham vida. Descobre agora